A última vítima do Vale dos Caídos

Gonçalo Pereira Rosa Texto

Como um tropeção linguístico e cultural quase estragou a carreira de José Valente.

As luzes dos holofotes do Estádio da Luz começam a apagar-se depois de uma noite memorável. Os últimos redactores dos jornais acotovelam-se para saírem do curto espaço dedicado à imprensa. Alguns estão visivelmente tranquilos – as edições dos seus jornais só verão a luz do dia na tarde de quinta-feira, 25 de Fevereiro de 1965, pelo que a marcha do relógio ainda não se tornou opressiva. Em contrapartida, os representantes dos jornais matutinos e do trissemanário A Bola correm desenfreados para os telefones ou para os táxis que os conduzirão aos jornais. Para eles, cada segundo conta na dolorosa fornalha requerida por um jornal à beira do fecho.

Uma das regras tácitas do Jornalismo desportivo exige que, à ocorrência de um acontecimento retumbante, correspondam crónicas igualmente enérgicas e laudatórias. Hoje, foi um desses dias. Na primeira mão dos quartos-de-final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, o Benfica esmagou o Real Madrid por 5-1.

Na tribuna de imprensa. Fernando Soromenho, redactor desportivo do Diário de Lisboa, magica já o título que dará à crónica do seu jornal: “Eusébio? Só fuzilado!”. Por A Bola, assiste ao jogo a fina-flor do jornal: Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio e Mário Zambujal espremem o sumo do encontro e Alfredo Farinha anuncia: “Esmagado o ‘monstro sagrado’ do futebol europeu”. No Diário de Notícias (DN), Alberto Freitas, Zinck Negrão e Fernando Pires registam: “A realidade impôs-se ao Real”. O Século, seco e anónimo, marca o episódio com palavras áridas, sempre cioso do velho lema da casa de que os acontecimentos não se embelezam – registam-se como um estenógrafo.

O Mundo Desportivo (MD) tem uma desvantagem: a próxima edição só será publicada na sexta-feira, 24 horas depois da concorrência. Resta pouco para dizer. Como sempre, o jornal aposta num “documentário gráfico”, explorando a melhor impressão que as artes tipográficas da Empresa Nacional de Publicidade permitem. Mas é pouco.

José Valente, o chefe da redacção, matuta numa alegoria que possa reflectir a grandiosidade da vitória do clube de Lisboa sobre o rival madrileno. No dia do jogo, dir-se-ia que ninguém no jornal acreditara na possibilidade de goleada. O título de primeira página fora cauteloso em excesso: “Vencer ou cair dignamente: as únicas soluções compatíveis com o prestígio do Benfica”. Agora, terá de se redimir.

Na redacção, no edifício do DN no Marquês de Pombal, José Valente troca impressões com outros redactores. Enquanto Couto e Santos, talvez o jornalista português com melhores contactos na Europa do futebol, escreve uma crónica sobre as pretensões do Benfica na competição, outros camaradas conversam com Valente.

Eduardo Guita Júnior, especializado em ciclismo, torce o nariz à ideia que o chefe da redacção burila para assinalar a efeméride. “Sempre achei má ideia misturar desporto com política. Este episódio resume-se a uma escolha infeliz de palavras”, conta. Luís Alberto Ferreira, que durante quatro anos fora correspondente do jornal em Espanha, é consultado. “O Zé Valente quis saber se o título que ele escolhera seria melindroso”, lembra o redactor. “Disse-lhe que achava a escolha perigosa e, ainda por cima, factualmente errada. Os Caídos tinham sido muito mais os republicanos”.

José Valente, porém, não quer abdicar da ideia que lhe parece genial. Impõe a sua decisão. Para a posteridade, na edição do dia 26, o jornal titula: “O Vale dos Caídos mudou-se para Lisboa”. Mais à frente, tenta desenvolver a ideia com alguma precipitação: “Não foi realmente a batalha de Aljubarrota. Nem tão pouco a de Valverde, ou qualquer outra em que os espanhóis e os portugueses tivessem escrito páginas gloriosas da sua história. Mas foi bonito assistir-se à vitória do Benfica…”

Está prestes a desabar sobre o jornalista e o jornal um terramoto ibérico.

O Vale dos Caídos é um monumento incómodo na história espanhola. Pouco depois da conclusão da Guerra Civil, Franco decidiu criar um memorial aos soldados falangistas tombados durante o conflito. Entre 1940 e 1959, cerca de 30 mil combatentes foram ali sepultados, na serra de Guadarrama, com honras militares. O monumento foi erguido por trabalhadores contratados, mas também por prisioneiros republicanos forçados a erigir a obra como parte da penitência por combaterem as tropas falangistas. Dedicado à memória de Primo de Rivera, fundador da Falange Espanhola, e considerado a maior vala comum de Espanha, é uma edificação de significado incómodo para os espanhóis.

Em 1957, Franco emendou a orientação original, considerando que o Vale dos Caídos era um monumento à unificação do povo espanhol, mas, para a oposição à ditadura, foi sempre entendido como um marco de triunfalismo dos falangistas. A mera circunstância de Franco ali ter sido sepultado, nas imediações de muitas das suas vítimas, é suficiente para despertar discussões intermináveis sobre ideologia e monumentalidade.

Em 1965, data do incidente, o Vale dos Caídos não se discute em Espanha. Aceita-se com uma reverência às vítimas e uma certa prosápia dos vencedores… até um jornalista português o colocar em causa, despreocupadamente, numa crónica sobre futebol.

A PIDE ENTRA EM ACÇÃO

É difícil avaliar de onde parte a primeira contestação à estranha primeira página que oMD distribui pelas bancas. Nas zonas de fronteira terrestre ou aérea, o jornal capta a atenção dos leitores espanhóis. Mal se apercebe do problema diplomático que tem em mãos, a direcção da PIDE emite a ordem de serviço n.º 108/65, requerendo a apreensão imediata do jornal. Quanto menos exemplares circularem, menores serão as repercussões, mas, na psicologia de uma nação sob ditadura, um jornal interdito é como um fruto proibido.

Em poucas horas, os vários postos de fronteira comunicam com a direcção, dando conta do sucesso relativo das apreensões. Do Funchal, ao meio-dia do dia 27, informa-se: “PSP local ajuda apreensão último número jornal MD. Esta delegação está procedendo harmonia”. Em Faro, António Gonçalves Dias, chefe da subdelegação, dá conta do burburinho causado pelo jornal em Vila Real de Santo António “em face de título inserto na primeira página, alusiva ao monumento a Los Caídos”. O ruído não se limita ao lado português da fronteira: “Nesse mesmo dia, esteve naquela vila o comissário provincial da polícia espanhola de Huelva, que pretendia ler um desses jornais. Foi informado, pelo chefe daquele posto, que os mesmos haviam sido todos apreendidos pela PSP, fazendo-lhe ver que não havia qualquer carácter político no assunto”.

De Elvas, o chefe de brigada Luís Martins Ferreira faz saber que a secção local da PSP foi mobilizada para essa acção, mas, “nesta cidade, causou forte repulsa a epígrafe daquele jornal, na medida em que o responsável misturou a política com o desporto. O acontecimento tem sido bastante verberado, dadas as amistosas relações existentes e que um indivíduo sem escrúpulos tentou menosprezar”. Como um formigueiro, as secções da PIDE reportam para Lisboa, testemunhando a expansão nacional do MD. Parece evidente que não bastará recolher jornais. No documento de Elvas, um inspector com assinatura irreconhecível rabisca: “Visto. Convoque-se o autor do artigo para ser ouvido em declarações”.

A Censura não revê provas doMDe percebe-se o desprendimento dos censores: o cadastro do Secretariado Nacional de Informação sobre as infracções cometidas pelo jornal até esta data é curto – duas ocorrências, uma das quais arquivada sem multa. Do ponto de vista do controlo da informação, A Bola, alvo de suspensão de publicação durante um mês em 1946 por sátira a um pseudo-jogo internacional, e o Record, autor de algumas infracções administrativas, são mais problemáticos.

Consciência do regime, o Diário da Manhã do dia 27 procura amenizar o incidente diplomático, fazendo ver aos parceiros ibéricos que o episódio resultara da irresponsabilidade de um jornalista e não de uma campanha de fundo do governo. Em nota editorial sob o título “Não está certo”, o jornal de Barradas de Oliveira refere a “lamentável falta de respeito à expressão Vale dos Caídos”. Prossegue depois: “Acreditamos que não houve má intenção no facto, mas apenas um excesso de entusiasmo que levou a não se considerar devidamente a veneração religiosa que deve ter-se pelo santuário cristão e patriótico da grande nação irmã. Quando se fala em Vale dos Caídos, há um conjunto de coisas sérias que não podem deixar de impressionar, desde o sangue de um milhão de mortos sacrificados ao delírio de doutrinas malsãs que subvertiam a Espanha até à ideia de paz e de unidade que se firmou sobre o martírio e, por fim, a consagração num dos mais grandiosos monumentos do mundo inteiro”. O diário oficioso conclui: “Nós também rejubilámos com a vitória do Benfica. Mas, além de não ser de boas maneiras e espírito desportivo fazer graça com a derrota do adversário, é repugnante a falta de respeito pelas coisas sérias e sagradas”.

No Arquivo Histórico e Diplomático, não se encontraram até à data documentos que certifiquem a existência de um protesto formal da embaixada de Espanha ao Governo português, mas a irreverência de José Valente chega certamente ao público espanhol graças aos “esforços” de um jornalista de A Bola, correspondente do jornal espanhol Marca em Portugal. A quente, no dia 26, o correspondente Henrique Monteiro remete a notícia do dia por telefone para Madrid: “O jornal matutino Mundo Desportivo apareceu esta manhã com um título a toda a largura de página relativo ao encontro de futebol Benfica-Real Madrid, no qual se lia: ‘O Vale dos Caídos Mudou-se para Lisboa’”. O relato prossegue: “Este título foi qualificado como irreverente pela embaixada de Espanha na capital portuguesa, motivando uma resposta enérgica ao periódico”. Sem vontade de respigar a humilhação desportiva do clube espanhol, a Marca vê no incidente a oportunidade de canalizar a fúria dos leitores nacionalistas, puxando a nota do correspondente português para a primeira página.

Henrique Monteiro fornece mais informações aos leitores espanhóis. A Censura já ordenara a remoção dos exemplares dos pontos de venda e “o provável, neste momento, é que, além da sanção correspondente, sejam tomadas medidas para evitar semelhantes exageros, sem que se possa descartar outra sanção de maior gravidade”.

“Henrique Monteiro era um jornalista da velha guarda, juntamente com Ernesto Silva, Mário Macedo e outros”, conta Jorge Schnitzer que ainda conviveu com o veterano na apertada redacção de A Bola na Travessa da Queimada. “Com a entrada dos redactores mais jovens (como eu e Santos Neves), [o chefe da redacção] Vítor Santos negociou com eles a sua passagem à reforma. Era um senhor calvo, já de muita idade. Tinha um escarrador junto à sua secretária. Um nojo. No dia em que se reformou, fez-se uma festa na redacção para se deitar o escarrador para o lixo”.

EM APUROS

O episódio do Vale dos Caídos representa para Raul de Oliveira, o director do MD, o último combate de uma vida ao serviço do Jornalismo. Como uma sequência de dominós, cada peça derrubada implica a queda da seguinte até a avalancha de repercussões chegar a José Valente. No próprio dia 27, a Direcção dos Serviços de Censura comunica a Raul de Oliveira a decisão de suspensão do jornal. Com a indicação “urgentíssimo” no despacho, António Neves Martinha comunica que, “por determinação superior, foi ao jornal MD, da direcção de V.Ex.ª, aplicada a suspensão por um número, pelo que não poderá esse jornal publicar-se no seu próximo dia de saída, ou seja, na segunda-feira, dia 1 de Março próximo”. A interdição “fundamenta-se no facto de se ter inserido na primeira página deste último número expressões ofensivas para um país amigo”.

Neves Martinha assumira a direcção dos Serviços de Censura em Junho de 1961, depois de um longo tirocínio como subdirector. Como comenta o historiador Joaquim Cardoso Gomes, “Martinha, licenciado em Direito, monárquico na juventude, iniciou a carreira política como presidente da Câmara Municipal de Mafra entre 1936 e 1939, pertencendo activamente à União Nacional e à Legião Portuguesa. No pós-guerra, entrou para os quadros da Direcção-Geral da Administração Política e Civil, do Ministério do Interior, percorrendo entre 1941 e 1948 as secretarias dos governos civis de Vila Real, Setúbal e Santarém”. Nomeado para a Censura, “nunca pertenceu ao círculo político próximo de Caetano, o grupo da Choupana, pejorativamente designado na Legião como marcelinos, mas manteve uma relação de segunda linha desde os tempos de estudante em Lisboa que proporcionou um reencontro político que iria perdurar além da chamada de Caetano a Presidente do Conselho”.

Desconhece-se o teor das discussões na administração do jornal e o esforço que Raul de Oliveira terá feito para segurar o seu chefe da redacção, mas a empresa é categórica: um incidente desta magnitude, que coloca em causa a sobrevivência do jornal, tem de ser resolvido exemplarmente: José Valente será despedido e o desfecho noticiado em curta nota editorial no jornal seguinte, o do dia 5. Em 48 anos de ditadura, é o único caso de um chefe de redacção demitido por crime de imprensa.

A diplomacia, porém, exige respostas mais céleres. E o governo português sente necessidade de esclarecer o seu congénere espanhol do carácter extraordinário do incidente. Por isso, na edição de 28 de Fevereiro, a Marca publica uma carta de Luís Filipe de Oliveira e Castro, conselheiro de imprensa da embaixada portuguesa em Madrid. Nela, o diplomata regista: “A imprensa desportiva de Portugal não está sujeita a censura prévia, pelo que o MD publicou o título sem conhecimento de qualquer autoridade portuguesa”. Mais: “As autoridades portuguesas, mal tiveram conhecimento das infelizes expressões usadas por aquele periódico, ordenaram POR SUA LIVRE E ESPONTÂNEA INICIATIVA, apreender todos os exemplares ainda em venda, instruindo um processo contra o próprio jornal”.

Oliveira e Castro informa ainda os leitores da Marca de que a resposta portuguesa fora tão célere que o Governo espanhol não tomara sequer conhecimento oficial do problema, pelo que, ao contrário do que Henrique Monteiro se apressara a comunicar, “não houve qualquer protesto da embaixada de Espanha em Lisboa, pois a espontânea iniciativa das autoridades portuguesas antecipou-se e, na medida do possível, reparou o mal causado e ofereceu as desculpas devidas aos representantes de um país amigo”.

Está reparado o potencial incidente diplomático. Na cópia deste recorte no processo que a PIDE abrira para este caso, a anotação de um inspector clarifica que a polícia se desinteressa a partir do dia 10 de Março da abertura de um processo-crime contra o jornalista: “Por determinação do Exmº Sr. Director, que conhece pessoas que afiançam politicamente o José Valente, deixou de ser necessário tomar-lhe declaração”. O que se terá passado entretanto?

ESCRUTINADO DESDE JOVEM

José Agostinho dos Santos Valente foi, como muitas personalidades relevantes do desporto português, um casapiano. Ali molda o carácter e descobre a vocação para o futebol. Pratica a modalidade com alguma notoriedade, jogando a defesa-direito. Alentejano de Moura, regressa ao clube da terra e tenta a sorte durante cinco anos. Não se profissionaliza, pelo que volta à capital no início dos anos 1940. É jovem, precisa de se empregar. Candidata-se à função pública e cumpre o serviço militar, atingindo o posto de furriel. A partir de 1949, com 27 anos, “exerce funções no Grémio dos Armazenistas Exportadores de Retalhistas do Azeite, onde foi colega do grande jogador do Benfica, Guilherme Espírito Santo”, lembra Luís Alberto Ferreira. Para essa admissão, é fundamental a recomendação do seu cunhado, Gonçalo de Mesquitela, então presidente do Grémio e amigo de infância de Marcello Caetano.

Nas viagens de comboio entre a sede do Grémio e Paço de Arcos, onde reside até 1956, trava amizade com Carlos Pinhão, então ainda na redacção do MD. Será Pinhão a apresentá-lo a Raul de Oliveira, recomendando-o para o jornal. Ao longo da carreira, como outros camaradas, Valente concilia o trabalho com a carreira jornalística.

No MD, ascende velozmente. Escreve bem e com fluidez. Não tem o talento para a reportagem de Carlos Pinhão e Alfredo Farinha, os seus antecessores no jornal, mas é persistente e cria uma boa rede de contactos. Na edição de 13 de Fevereiro de 1957, o jornal classifica-o mesmo como “um dos críticos de futebol mais sabedores da nova geração”. O que o jornal não diz, mas até a PIDE sabe, é que José Valente é “um ferrenho simpatizante do S. L. Benfica”.

No MD, Valente forma com Couto e Santos, José Sampaio, Guita Júnior, Luís Alberto Ferreira, Adriano Peixoto, Vasco Santos, Frederico Cunha e José Ilharco uma equipa competente. Dá também oportunidades aos jovens que lhe batem à porta: Alexandre Pais, futuro director do Record e do 24 Horas, é um desses jovens a quem Valente permite colaborar no Jornalismo desportivo: na ocasião, como atleta-jornalista em 1964 nos Jogos da FISEC, em Espanha. O jornal, porém, parece estar no início de uma curva económica descendente, talvez em virtude do estranho processo que o leva a nomear Trabucho Alexandre em Dezembro de 1954 para a direcção (em co-direcção com Raul de Oliveira), revertendo depois a situação em Março de 1956. Nunca se esclarece totalmente a decisão, mas tudo indica que a convulsão custa ao jornal a saída de Carlos Pinhão e Alfredo Farinha, que marcarão indelevelmente as páginas do jornal rival.

A história da imprensa desportiva tem exacerbado o papel de A Bola, menosprezando os contributos dos concorrentes – na história como na vida, os sobreviventes ficam de pé para contar a história mais conveniente. Luís Alberto Ferreira, que colaborou com A Bola e o MD, tem opiniões firmes sobre o tema: “Os nossos enviados-especiais eram, por vezes, compelidos a ‘abastecer’, também, a secção desportiva do DN. O curioso é que nos jogos das quartas-feiras europeias, nós, em termos de reportagem, batíamos A Bola”, conta. “Após o jogo, no hotel, o enviado de A Bola transmitia umas notas sobre o jogo e a crónica era trabalhada por um numeroso piquete que procurava escrever ao estilo do enviado: crónica, cabinas, tudo. Nós, sim, trabalhávamos toda a madrugada, à máquina, no hotel, enquanto o colega de A Bola jantava – luxo a que não nos dávamos. Tragávamos umas sanduíches e a maratona findava ao amanhecer. Logo a seguir, íamos com a equipa para o aeroporto. E as nossas reportagens saíam na sexta-feira, devidamente arquitectadas e… escritas pelo próprio”.

Como nos velhos combates de pugilismo, os sobreviventes do MD gostam de contar as entrevistas exclusivas com Kopa e Di Stefano, com o presidente da FIFA ou com Eddy Merckx. Luís Alberto Ferreira vai até mais longe: “A maior, mais visceral, mais completa entrevista com Eusébio, fê-la o MD. Mas quem viveu do Eusébio foi A Bola. Até certo ponto, à custa do Eusébio”. São os pequenos troféus de uma guerra perdida com a extinção do jornal na década de 1980.


EPÍLOGO

A imprensa portuguesa não é autorizada a noticiar o caso para não lhe dar maior amplificação, mas ele é interiorizado em todas as redacções como aviso à navegação. A Bola, já escaldada pelo incidente de 1946, usa o episódio como lembrete dos riscos que um acto irreflectido pode causar a todos: “Lembro-me de o Vítor Santos dizer: ‘Isto não pode acontecer aqui. O jornal é o nosso ganha-pão. Num desportivo, não há lugar para política’”, conta Jorge Schnitzer. “Aliás, no meu início no jornal, explicaram-me as regras. Os árbitros são como juízes, são a autoridade. Não se questionam e são tratados por senhor. Até na ficha técnica.  Num acto de rebeldia, lembro-me que não respeitava essa regra. Esquecia-me de pôr o senhor. No princípio, o chefe emendava, mas não dizia nada… Depois, começou a sair sem isso. Américo Tomás também era sempre ‘o venerando chefe de Estado’ nas legendas de A Bola.

Na primeira edição após a suspensão, o MD introduz uma nota de 14 linhas sob o título Esclarecimento: “A Empresa Nacional de Publicidade e o director do MD lamentam e repudiam as expressões contidas numa crónica inserida neste jornal e que feriram a sensibilidade dos seus leitores. Ao autor da referida crónica, chefe da redacção do MD, único e total responsável pelo escrito que veio a público, foram aplicadas as sanções que o caso requeria”.

Em Espanha, curiosamente, a notícia já fora transmitida: o ABC do dia anterior noticiara: “Chefe da redacção do MDlisboeta destituído”. Há uma explicação lógica: a ANI, agência noticiosa, já transmitira para o mundo a notícia da destituição e da substituição de José Valente por Afonso Vaz Lacerda, então nas funções de secretário-geral da Federação Portuguesa de Futebol. Na mesma edição do dia 5, o MD publica duas despropositadas colunas sobre a amizade luso-espanhola. É uma declaração de apaziguamento que fecha o ritual de sacrifício imposto pela crónica do dia 26.

José Valente fica desamparado durante três meses, mas ainda tem amigos na redacção, sobretudo a cumplicidade alentejana e familiar com Urbano Rodrigues, velho chefe da redacção aposentado do DN, mas ainda com influência na empresa. A PIDE conclui o inquérito no final de Março, sem detectar malícia no caso do Vale dos Caídos, pelo que não há obstáculos à reintegração, desde que esta seja discreta.

José Valente é assim readmitido na Empresa Nacional de Publicidade e colocado no DN. “Descia um andar no edifício, subia na escada profissional”, registou mais tarde o seu obituário. Chefiou ali os serviços de Propaganda e Províncias até 1974.

Em contrapartida, no início de 1966, a administração da empresa conclui que Raul de Oliveira, alma e mentor do jornal desde a primeira hora, já não serve para o cargo e solicita ao Secretariado Nacional de Informação a validação do nome de José Moreira Boavida-Portugal, antigo chefe-adjunto da redacção de O Século, para director. “Raul de Oliveira era um bom repórter, tinha sagacidade para agarrar as coisas e escrevia bem. Era muito culto. Dentro do desporto, era dos que tinham mais categoria. Era uma pessoa muito sensível e muito afável com toda a gente e estimado por todos”, conta Guita Júnior. “Já para o fim da vida, mandaram-no para casa, reformaram-no. E foi mau para ele. Ele nascera naquele jornal, ali deveria morrer. Pouco depois da Volta a Portugal de 1965, deram-lhe essa novidade. Chegaram a estar os dois directores e ele percebeu o que ia acontecer. Foi substituído por Boavida-Portugal, um homem que tinha pouco que ver com o desporto. Não simpatizei com ele. Era um tipo fechado”.

Amigo de Fernando Pires, consciência crítica do DN durante 50 anos, José Valente mantém-se no jornal mesmo após a Revolução. Ascende a sub-chefe de redacção. Alice Vieira ainda trabalhou com ele: “Como jornalista, era fraco, mas simpático com os colegas. Ainda foi meu chefe”, na secção de Informação Geral, mais tarde transformada em Sociedade, conta a escritora.

Luís Alberto Ferreira colaborou com frequência com José Valente e recorda um homem “de grande carácter, irrepreensível. Como chefe da redacção, tinha gestos bonitos: certa vez, quando me desembaracei bem de uma missão em Zagreb, ele deu-se ao trabalho de ir ao aeroporto aguardar-me à chegada e transmitir calorosos cumprimentos pelo êxito profissional. Ele era assim”.

José Valente sofre, entretanto, um drama terrível, com a perda de um filho no Rio de Janeiro, vítima de um crime violento. Decide antecipar a reforma em 1985. Morre em Lisboa no dia 11 de Março de 1990 e é sepultado na sua Moura natal. Foi, de certa forma, a última vítima do Vale dos Caídos espanhol.