A refinada carta ao director do Público

Gonçalo Pereira Rosa Texto
Luís Taklim Ilustração

A secção de cartas do Público transformou-se no Verão de 1991 num recinto de combate com uma fonte. Pretexto para recuar ao primeiro ano de vida do jornal.

A carta passa de mão em mão. Comenta-se o conteúdo e o remetente. Tudo parece inverosímil, mas, vistas bem as coisas, todo o primeiro ano e meio de vida do Público tem oscilado entre um conto de fadas e um pesadelo. Em Agosto de 1991, o jornal leva pouco mais de ano e meio de funcionamento e o Accionista, termo (carinhoso ou pejorativo, consoante os casos) que quase todos usam na redacção para aplicar à Sonae, começa finalmente a ver a luz ao fundo do túnel.

A fundação do novo jornal fora um parto difícil. O núcleo duro formara-se com redactores que, trabalhando no semanário Expresso, tinham conspirado (a expressão é de Vicente Jorge Silva (VJS), então director-adjunto do semanário, no seu livro-entrevista com Isabel Lucas) para criar um novo jornal. A ideia fermentara no final de 1987, com a constatação de que a periodicidade semanal já não dava resposta à urgência do quotidiano, mas Francisco Balsemão, proprietário do Expresso, parece manter a fé no formato que desde 1973 garante a prosperidade da sua empresa. “Embora não o assumindo, os dissidentes do Expresso eram animados pela secreta ambição de tornar irrelevante o jornal da Duque de Palmela”, especula Joaquim Vieira, na sua biografia não oficial de Francisco Balsemão. “Nunca tal nos passou pela cabeça”, contrapõe Joaquim Fidalgo, um dos jornalistas do grupo fundador do Público. “Sempre acreditámos que era importante transferir para o universo dos jornais diários o know how e o modo de fazer jornalismo aprofundado que, naquela altura, existia sobretudo nos jornais semanários. E achávamos que faltava em Portugal um verdadeiro diário de referência”.

Em segredo, em pleno convés do “navio-almirante”, como Balsemão gosta de tratar o Expresso, vários jornalistas começam a preparar o projecto de um novo jornal. Vicente não tem ainda uma ideia concreta do que pretende fazer, mas, num acesso de frustração, solicita a Acácio Gomes, jornalista da secção de Economia, que lhe encontre entre os seus contactos um capitalista capaz de financiar a aventura. Num país com poucos capitalistas, perfilam-se três possibilidades principais: Américo Amorim, Horácio Roque e Belmiro de Azevedo. Vicente aponta baterias a Belmiro, o dono da Sonae. “Eu não queria simplesmente pegar no telefone, ligar para a Sonae e pedir para falar com o presidente do grupo”, confessou o jornalista nas suas memórias. Ao contrário da maioria dos jornais portugueses, o Público nasce, assim, por impulso de profissionais do meio que partem à procura de um capitalista que financie a aventura.

A história, porém, tem outras versões. Nas suas memórias, publicadas no Verão de 2021, Balsemão aponta Augusto M. Seabra como “o cérebro da iniciativa”, lembrando que este, “na penumbra, teve sempre uma influência muito grande naquele grupo”. Em contrapartida, em entrevista ao autor, o fotógrafo Rui Ochoa lembra que VJS vivia com a obsessão de produzir uma réplica portuguesa do diário italiano La Repubblica. “O Vicente teve sempre a mania do La Repubblica, era o seu jornal de referência e queria fazê-lo cá. Um dia, o Acácio Gomes disse-me que um empresário com muito dinheiro queria fazer um jornal, mas não me disse quem era. Adiantou, porém, que ele queria o Vicente e a sua equipa e tinha um milhão e meio de contos para gastar”.

Ochoa e VJS almoçam para discutir o projecto. “O Vicente disse-me que só participava se eu entrasse. Eu estava então no Jornal de Notícias e tinha uma avença do Expresso. Concordei, com algumas condições: só entrava se fosse eu a escolher a equipa de fotografia, queria um cargo de chefia e investia dez mil contos no projecto, pois queria ser accionista. Não sabia quem eram os investidores, mas decidi que aquele seria o meu projecto de vida”, conta.

Em Janeiro de 1988, Vicente e Acácio Gomes reúnem-se pela primeira vez com Belmiro de Azevedo. Mais tarde, envolvem-se outros protagonistas, como o subdirector Jorge Wemans e Augusto M. Seabra. A identidade dos fundadores é, aliás, um tema de dissonância na bibliografia sobre o tema, pois as memórias não coincidem em todos os pormenores e há vários candidatos a fundadores que não fizeram de facto parte do núcleo original, o “Grupo dos Nove”.

Na sequência de uma primeira reunião com Vicente, Belmiro de Azevedo indica o engenheiro Carlos Moreira da Silva para coordenar, pelo lado da Sonae, toda a elaboração do projecto. “Foi directamente com ele que os jornalistas do ‘Grupo dos Nove’ trabalharam durante os meses seguintes.  Teve um papel fundamental, inclusive a convencer a estrutura de topo da Sonae a apostar no projecto. Depois, durante os primeiros anos, foi ele que esteve à frente do Público enquanto representante do accionista”, conta Joaquim Fidalgo.

A recapitulação de Vicente Jorge Silva traz mais um elemento para a história. Nesse mesmo dia, a Sonae realiza uma controversa operação pública de venda (OPV) de sete empresas do seu grupo, acedendo a benefícios fiscais que, à partida, o legislador concebera para OPV sobre pelo menos 25% do capital das sociedades envolvidas. A manobra é engenhosa e permite à empresa realizar uma mais-valia significativa, valendo-lhe, porém, uma barragem de críticas e até um processo judicial. No auge do turbilhão, Vicente pergunta ao empresário como gostaria de ver tratado um assunto semelhante num jornal de que fosse proprietário. “Se for você o director do jornal, é você quem tem de tratar do assunto e não eu. Só peço para ser ouvido nas questões que me dizem respeito. O resto não é comigo”, responde Belmiro.

O projecto mantém-se em banho-maria durante alguns meses. Vicente hesita na “conjura” contra o jornal ao qual estivera ligado durante 15 anos. Relata a Balsemão as manobras em curso. Há talvez motivos mais íntimos para essas dúvidas. Em Junho de 1968, quando a Censura decidira que o Comércio do Funchal, o jornal de páginas cor-de-rosa que o feitio irrequieto de Vicente e de José Manuel Barroso tinha transformado num foco de críticas ao regime, passaria a ser revisto regularmente pelos Serviços de Censura de Lisboa, provocando mais despesas e tempo perdido, Francisco Balsemão solidarizara-se com Vicente, propondo-lhe o cargo de correspondente no Diário Popular, como o comprova um documento do seu arquivo particular mostrado ao autor. Fora uma bóia de salvação num período difícil da vida do jovem jornalista. Em face dos rumores que já circulam no bas-fond lisboeta, VJS reúne-se com Balsemão e reconhece que projecta apostar num novo jornal diário.

Nas suas memórias, esclarece ter contado a Balsemão que existiam conversações em curso com Belmiro de Azevedo. “O Belmiro suscitava-lhe uma irritação muito particular, sentimento que, aliás, era recíproco”, esclarece Vicente sobre dois dos três patrões que encontrou no jornalismo (o terceiro será o empresário Paulo Ferreira, na revista Invista). “O Belmiro achava o Balsemão um menino nascido num berço de ouro e o Balsemão considerava-o um chico-esperto e novo rico”. Balsemão sustentou, na obra já referida, que soube anteriormente do compromisso de alguns redactores do Expresso com o novo projecto, embora continuassem “a ganhar o seu salário calmamente, enquanto preparavam um produto concorrente e aliciavam pessoal da casa para ir trabalhar com eles”. A acusação é refutada: “Nós próprios não sabíamos se íamos sair do Expresso. Tudo dependia do projecto final, diz Fidalgo. “Em boa verdade, não sabíamos se iríamos sair”.

As reuniões de “conspiração” prosseguem, mantendo-se no segredo dos deuses. Nem todos os jornalistas, porém, conseguem guardar segredos. Vicente conta pormenores a demasiados interlocutores. Em 21 de Outubro de 1988, são publicadas notícias sobre a sua participação num novo jornal, com destaque para uma de O Independente, que dá conta da empresa financiadora e até da circunstância de existirem convites a outros redactores do Expresso. Poderia ter sido o fim precoce do Público: não há ainda um acordo fechado com Belmiro e é bem conhecida a aversão de Balsemão a quem decide virar as costas às suas empresas. “Um dia, o José António Saraiva convocou uma reunião de editores no Expresso e anunciou que sabia do projecto em curso e que agradecia que quem estivesse envolvido tomasse a iniciativa de sair”, conta Rui Ochoa. “Ninguém se acusou, até porque não havia convites formais do outro lado”.

Embora não o confesse nas memórias, Vicente recua. Promete a Balsemão que renovará o compromisso com o Expresso e profere a O Independente de 5 de Janeiro de 1989 uma declaração pública de reaproximação ao jornal de Balsemão. A equipa é apanhada de surpresa e alguns dos membros fundadores tomam conhecimento da débacle pela rádio. Belmiro, porém, não costuma desistir dos seus projectos e combina com o grupo de jornalistas (“Grupo dos Nove”, agora reduzido a oito) que prossigam os trabalhos preparatórios, sempre com o acompanhamento de Carlos Moreira da Silva pelo lado da Sonae. Logo se verá mais tarde se a recusa de VJS é definitiva, embora o seu papel seja crucial. “Nós dissemos claramente a Belmiro de Azevedo que nunca faríamos o jornal com outro líder que não o Vicente”, conta Fidalgo. “Ou era com ele, ou não era. Mas estávamos convictos de que acabaríamos por convencer o Vicente a voltar. E foi isso que aconteceu”.

O projecto é desenvolvido, apesar de alguma ingenuidade. Os primeiros estudos da Nielsen para a circulação do novo diário são absurdos. “Havia a convicção de que o Público podia vender 200 mil exemplares, imagine-se!”, recorda Vicente nas suas memórias. “Eu achava que no máximo seriam uns 80-100 mil exemplares e já estava a ser imensamente optimista”. Em Março de 1989, a cúpula da Sonae dá luz verde ao projecto, apostando no lançamento do jornal até final do ano. Vicente é convencido pelos restantes jornalistas a regressar, num exemplo atípico de como uma alcateia pode por vezes puxar pelo macho-alfa e não o contrário.

Pelo caminho, porém, ficara Rui Ochoa, farto de não lhe serem atendidas as condições negociais: “Já havia uma data para início dos trabalhos do novo jornal e eu estranhei que ninguém me dissesse nada. O Vicente lá contou que a construção da equipa cabia ao Jorge Wemans e que já tinham sido contactados dois fotógrafos do Porto. Colidimos aí”, conta. Entretanto, Balsemão oferecera-lhe a hipótese de formar uma equipa e passar a efectivo do Expresso.

O “GRUPO DOS NOVE”

Vicente e Wemans abandonam o Expresso, como o próprio semanário noticia no dia 1 de Abril de 1989, embora os restantes jornalistas se mantenham mais algumas semanas no jornal. “Liguei ao Vicente nesse dia e ele nunca atendeu. Respondeu-me a Lucília Santos, secretária que tinha sido do Expresso, e eu ouvi-o por trás a barafustar com ‘esse mercenário’. Em desespero, ainda falei com o José Manuel Fernandes, que me pediu para esperar mais tempo. Mas já não havia mais tempo. Era então ou nunca”, conta Ochoa.

O grupo dos nove fundadores inclui Vicente, Jorge Wemans, Augusto M. Seabra, Nuno Pacheco, José Manuel Fernandes, José Vítor Malheiros, o designer Henrique Cayatte e, no Porto, Joaquim Fidalgo e José Queirós. No momento certo, e ainda acompanhados por Teresa de Sousa e Lucília Santos, abandonam todos o Expresso, numa das maiores debandadas da história do século XX nos jornais portugueses. Só comparável à saída de 12 rebeldes de O Século para o Diário em 1902, do êxodo de toda a equipa do Diário de Notícias para posterior acolhimento em O Mundo em 1924, da demissão de quase toda a redacção do Diário Ilustrado, em conflito com a administração, em 1958, e da demissão conjunta de Artur Portela, José Sasportes, Carlos Veiga Pereira e Vasco Pulido Valente do Diário de Lisboa, em 1961.

Na sua recapitulação escrita do episódio, em volume publicado em 2005, o director do Expresso, José António Saraiva, lembra um momento muito difícil na vida do jornal, sobretudo pelo processo penoso de recomposição da redacção. Segundo ele, Joaquim Vieira encarrega-se da reorganização, pois “acha que vamos ficar só com os medíocres”. No final da acção decisiva de Vieira, “17 jornalistas saem da redacção (quase todos para o futuro Público) e 19 entram”. Nas suas memórias, Balsemão prefere elogiar o papel de Clara Ferreira Alves nessa reconfiguração decisiva.

O modelo pensado para o Público é o do Libération, embora no capital inicial da empresa entrassem também as empresas proprietárias do La Repubblica e do El Pais. Com coordenação de Adelino Gomes, entretanto contratado, o proto-jornal organiza concursos para contratação de jovens jornalistas: “De um total de 200, são seleccionados 25, numa prova final no Fórum Picoas em Lisboa. Mas serão cooptados mais alguns”, conta Nuno Pacheco no Público de 5 de Março de 2018. Entre os recrutas de Lisboa, estão António Granado, Ana Fernandes, São José Almeida, Rui Cardoso Martins, Isabel Coutinho ou Luís Pedro Nunes, que terão carreiras distintas nas décadas seguintes. No Centro de Formação de Jornalistas do Porto, prestam-se provas semelhantes e saem nomes como Manuel Carvalho (actual director), David Pontes (actual director-adjunto), Paulo Moura, Pedro Rosa Mendes ou Manuel Jorge Marmelo.

O ARRANQUE

Com primeira página a cores, o Público propõe-se quebrar tabus na imprensa da época, mas o arranque é turbulento. A administração e a direcção descobrem, segundo Vicente Jorge Silva, que “a solução tecnológica para o processamento do jornal inventada por um dos crânios da MacIntosh em Lisboa era totalmente inadequada. Dava, quando muito, para fazer qualquer coisa como o Anuário Comercial de Portugal, mas nunca um jornal diário”, contou nas suas memórias. O processamento informático é excessivamente lento e o lançamento previsto tem de ser abortado, apesar das duas festas de lançamento já realizadas em Lisboa e no Porto e de já estar na rua uma campanha de promoção.

O próprio título não fora consensual. VJS evitara associações com jornais extintos, como O Mundo e o República. Propõe Público, “um título melhor, mais original e menos conotado com a herança dos velhos republicanos”, mas encontra alguma resistência na Sonae, que receia confusões semânticas com o sector público – tudo o que uma empresa de iniciativa privada quer evitar. Vinga, porém, o nome escolhido. Vicente é o líder incontestado, com uma criatividade só semelhante à sua lendária desorganização. Jorge Wemans é o contraponto nesse caos, assegurando os aspectos práticos, económicos, empresariais ou logísticos da condução do jornal.

As redacções de Lisboa e do Porto, finalmente estabilizadas a partir de 1 de Novembro de 1989, parecem preparadas para avançar. Da estimativa inicial de 70 jornalistas, evolui-se para cerca de 150. No próprio dia 1, as equipas projectam o primeiro de muitos “números zero”. Começam a trabalhar em tempo real, embora sem data definitiva para o lançamento. O semanário O Independente chega a glosar com esse esforço inglório, através de uma sátira de quatro páginas, no dia 12 de Janeiro de 1990, intitulada “Bonéco”, caricaturando o trabalho produzido em vão. No cabeçalho, entre chalaças sobre descontos no preço de capa com coupons do Continente, identifica Belmiro de Azevedo como o Conducatore e o administrador Nuno Vitorino como “editor de cheques”. Nas “notícias”, o semanário garante que o jornal sai de certeza “lá para o Verão”.

A Sonae preparara a publicação do primeiro número real para o dia 2 de Janeiro de 1990, mas a estreia corre mal. A Lisgráfica é responsabilizada publicamente por não dar resposta às necessidades de impressão, mas outros protagonistas culpam igualmente a incapacidade do sistema informático para remeter as páginas da publicação com a urgência indispensável. Ferido no orgulho, Belmiro fica furioso com o falhanço.

Prosseguem os problemas no primeiro trimestre de 1990, agravados pela perda de contratos publicitários destinados a um jornal que deveria já estar em circulação desde Janeiro. O lançamento é, por fim, adiado para 5 de Março de 1990, depois de testes bem sucedidos de impressão, em três rotativas em simultâneo. “Fizemos uma tiragem de 80 mil e depois tivemos de passar para 30 mil durante um certo período”, conta VJS.

Vicente Jorge Silva descreve também as fortes expectativas que a Sonae depositara no comportamento económico do jornal e a sua decepção face aos primeiros números. No mês de lançamento, a tiragem média é de 71 659, mas em Dezembro de 1990 já caíra para 57 105 exemplares. Providencialmente, a primeira guerra do Golfo constitui um chamariz de leitores, fazendo ascender a tiragem média a 74 427 exemplares, em Fevereiro de 1991. No Verão desse ano, tirando pouco mais de 60 mil exemplares por dia, o Público é uma locomotiva pesada que ainda procura engatar uma velocidade satisfatória.

A NOTÍCIA

Agosto de 1991. Desenhemos um triângulo no mapa da cidade de Lisboa.

O primeiro vértice fica necessariamente na Quinta do Lambert, em Telheiras, sede da redacção de Lisboa do Público. Coloquemos o segundo vértice alguns quilómetros para sul, em Moscavide. Ali funciona o Entreposto, grupo económico que representa a Nissan, entre outras marcas, em Portugal, Espanha e Moçambique. O panorama é muito mais desafogado no grupo gerido por António Dias da Cunha, empresário de quem muito se falará quatro anos mais tarde, quando entrar de rompante no Sporting, ao abrigo do Projecto Roquette. Por ora, Dias da Cunha gere o grupo empresarial que o pai expandiu, mantendo presença forte em Moçambique, apesar das convulsões da independência.

Falta o terceiro vértice que, por imposição geométrica, nenhum triângulo dispensa. Coloquemo-lo igualmente junto do rio, mas bastantes quilómetros para oeste. No Palácio de Belém, Mário Soares toma o pulso ao seu segundo mandato como presidente da República. Foi eleito em Janeiro de 1991 com uma maioria inquestionável. Jerónimo Pimentel, antigo jornalista do Público, foi protagonista involuntário do episódio que aqui se conta e lembra que “a fina-flor da finança portuguesa apoiou Mário Soares. Houve uma sessão de apoio no restaurante Faz Figura onde quase todas as personalidades da finança se mostraram”.

Dias da Cunha esteve lá, claro. Desde a primeira campanha presidencial de Mário Soares, em 1986, que apoiara a causa do MASP, Movimento de Apoio Soares à Presidência. Foi membro do Conselho Executivo das duas campanhas. Em entrevista ao Record em 26 de Agosto de 2000, contou que “a aproximação ao dr. Mário Soares veio a acontecer ainda ele era primeiro-ministro. Eu escrevia na revista Negócios, de que era director Gomes Mota. Nessa altura, fiz a defesa da candidatura do dr. Mário Soares à Presidência da República, ainda no tempo do Governo do Bloco Central. Achava que ele era o candidato natural do Bloco Central. O meu texto acabou por ir parar acima [sic] da secretária dele e fui convidado para integrar a campanha, no grupo inicial. Foi o meu primeiro banho político”, relatou.

Nos livros-entrevista que organizou com Maria João Avillez, Mário Soares contou também que, para a campanha de reeleição, decidiu não sobrecarregar o orçamento do PS. “Apelei às pessoas dispostas a ajudar-me e dirigi-me aos meios empresariais, avançando, desde logo, com uma condição: quem quisesse contribuir, deveria fazê-lo às claras e receberia um recibo, assinado por uma de três pessoas: António Dias da Cunha, Carlos Monjardino ou Gomes Mota”, disse. O processo foi tão bem sucedido que sobraram cerca de 300 mil contos.

Ao longo da campanha, a comitiva de Mário Soares desloca-se em carros cedidos pela Nissan. Não era estranho nas campanhas de então. Aliás, Jerónimo Pimentel crê que os repórteres do Público também viajam à data em veículos da marca japonesa, por força de um acordo com este grupo comercial.

Em Agosto de 1991, porém, o então jornalista do Público depara com uma circunstância peculiar. A revista internacional da Nissan, no seu número de Julho, publicara um artigo associando directamente o novo presidente da República à marca. A Nissan lançava então o modelo Máxima e a revista não poupa adjectivos: “Máxima recebe votação máxima do candidato vencedor”, assegura um dos textos, sob uma fotografia de um sorridente Soares no interior de um carro. “O principal político do país achou-o irresistível (…) e deu uma folga ao motorista”, acrescenta outro texto, legendando uma fotografia do PR de pé, ao lado do carro.

Cumprindo todas as regras, Jerónimo Pimentel ausculta as Relações Públicas da Entreposto Comercial, que asseguram a correcta cedência das fotografias pela Presidência da República, “com a indicação de que poderiam ser utilizadas como quiséssemos”. De Belém, Estrela Serrano, assessora do chefe de Estado, garante que Soares nunca autorizara “a utilização da sua imagem para efeitos promocionais”.

Vicente Jorge Silva não hesita em puxar a história para a primeira página e escreve um editorial sobre “a insustentável ligeireza de Soares”. Comenta que ninguém pretenderia, “a não ser por ostensiva má-fé, que Mário Soares recebeu qualquer pagamento ou outra espécie de contrapartidas pelo facto de imagens suas, ao volante de um automóvel, terem sido publicadas como publicidade pela Nissan”. Porém, “parece inconcebível, pelo menos num país europeu, que um presidente da República se preste, com tanta ligeireza e inocência, a promover um produto de consumo. É, além de ridículo, pouco consentâneo com a dignidade das funções de chefe de Estado (…) A condescendência e a permissividade com que Mário Soares se deixa arrastar para situações equívocas, a pretexto da simpatia, da gratidão ou do espírito de clã relativamente aos seus amigos ou apoiantes, tornaram-se um traço marcante do seu comportamento. (…) Soares é – será necessário lembrá-lo? – presidente da República”.

A história é publicada no dia 13 de Agosto de 1991. “Deveria ter morrido ali”, lembra Jerónimo Pimentel. “Era mais uma daquelas histórias incómodas, mas efémeras, que escrevemos sobre políticos. Não estávamos lá para lhes agradar”.

Até que chegou a carta.

A CARTA

Passam oito dias. Na tarde do dia 21, acabado de regressar de férias, Dias da Cunha toma conhecimento da notícia do Público. É provável que tenha cedido àquilo que na entrevista ao Record disse, mais tarde, ser o seu pior defeito: “Dizer aquilo que penso nos locais próprios. Nunca falo nas costas das pessoas”.

O presidente da holding Entreposto escreve uma carta a descompor Vicente Jorge Silva e o Público. Segundo Jerónimo Pimentel, “a carta era muito malcriada. Ameaçava – como veio a acontecer – cortar toda a publicidade do Entreposto no jornal, insultava-me como autor do texto e insultava o director”. Vicente lê o documento, partilha-o com a direcção e com o repórter envolvido e tem um ataque de fúria. Manda publicar parte do texto na secção de Cartas ao Director do dia 22.

Junta-lhe uma nota de redacção quase tão grande como o trecho seleccionado para publicação, informando os leitores de que o autor da missiva era “presidente da holding Entreposto e ex-director financeiro do MASP” – para não haver dúvidas. E o texto, que alguns dos fundadores do Público ainda citam de memória, era:

“Acabo de chegar de férias. Li o seu editorial do passado dia 13. Como muito bem sabe, tudo nele é falso. Trata-se de especulação pura a que procedeu exclusivamente para cobrir o que entendeu ser interesse seu. É indigno instrumentalizar assim a honra alheia. É, na verdade, de refinado filho da puta.

António Dias da Cunha”.

EPÍLOGO

O Entreposto cumpre a ameaça e cessa os contratos de publicidade com o jornal. A ferida demora anos a cicatrizar. Durante semanas, o Público vai trazendo à estampa cartas de leitores vexados com a “atitude desnorteada e insolente desse senhor” e perplexos com “os amigos do presidente”. Os arautos da deontologia debatem incansavelmente as razões do Público para difundir uma carta que contraria o próprio Livro de Estilo do jornal, que exige na versão então em vigor missivas que não colidam “em matéria de urbanidade e decência ou quaisquer outras relativas ao bom senso” com as normas de qualquer outro texto do jornal.

O tempo, claro, sara as polémicas. O Público e o Entreposto prosperaram. Nas memórias, Balsemão considera que a sua recusa de criar um jornal diário em 1989, como o grupo dissidente lhe propusera, “foi das decisões mais acertadas que tomei em toda a minha vida”. Antes de falecer, em 8 de Setembro de 2020, Vicente Jorge Silva recebeu, em 2015, o Prémio Gazeta de Mérito. No discurso de aceitação do galardão, fez o diagnóstico do estado da arte: “É preciso acordar antes que seja tarde. É preciso voltar às raízes da inquietação e inconformismo do verdadeiro jornalismo”.