Mário Zambujal | “Fui sempre um desalinhado”

Na hora da passagem do testemunho, após 14 anos na presidência do Clube de Jornalistas, Mário Zambujal percorre, numa roda de amigos, a sua longa carreira. Sempre com humor, conta um par de histórias fantásticas. Se fosse, hoje, jovem jornalista, gostaria de escrever crónicas. Testemunho de um desalinhado – “não significa que não seja nem carne, nem peixe”, alerta – atento às mudanças. Que sempre soube ser conciliador e pensar a frio.

Entrevista de Eugénio Alves, Maria Flor Pedroso e Paulo Martins

Paulo Martins (PM) – Começaste a carreira n’A Bola. Nunca escondeste a tua preferência clubística. Como gerias isso, num mundo em que os jornalistas nem sempre têm essa atitude.

Mário Zambujal (MZ) – Nunca me senti inclinado a forçar a realidade que eu via. Ainda hoje vejo o futebol com grande… Não é desprendimento… Posso ver com interesse o que se está a passar, mas não vibro ao ponto de, na posição de jornalista, me inclinar para um lado ou para o outro, consoante as minhas preferências. Nunca!

PM – Como é que isso era percecionado? Muitas vezes, os jornalistas dizem: não vou assumir a minha preferência clubística ou política. Mas têm-nas.

MZ – A certa altura, estava à frente do Sporting o Jorge Gonçalves, que resolveu levar a equipa à terra dele, perto de Chaves. E quis que eu fosse. Disse-lhe: “Não sou do Sporting”, mas ele insistiu muito eu fui. Pelo caminho, estavam vários núcleos de sportinguistas à espera da camioneta. Vinham ter comigo: “Já sabia que você era dos nossos”. E eu: “Não sou”. Uma vez, apanhei uma grande ripada no Jornal do Benfica. Mas não tenho grande passado como jornalista desportivo…

Maria Flor Pedroso (MFL) – Como não? Era a cara do [programa da RTP] Domingo Desportivo!

MZ – Era o condutor do programa. Não era comentador de jogos. N’A Bola, ainda fiz alguns, mas não muitos. Não me deixei nunca impressionar. Queria era fazer bem – “a ver se eles gostam do que eu faço” – porque era o mais novo da redação. Era uma questão de brio profissional, acima de qualquer outro interesse.

PM – Ainda passaste pelo Mundo Desportivo (MD), pelo Record… 

No Mundo Desportivo (MD), seis meses. No Record, seis meses.

MFL – Porquê? Chateava-se ou era despedido?

MZ – Nunca me chateei, nunca ninguém me despediu. 

Eugénio Alves (EA) – Cansava-se.

MZ – [A passagem por esses jornais] preenchia os espaços de ligação com o outro jornalismo. Quando saí d’O Século – era chefe de redação, o lugar mais importante da Imprensa portuguesa – convidaram-me para diretor do MD. Depois, dá-se aquele extraordinário acontecimento do 25 de Novembro e sai muita gente. O Vítor da Cunha Rêgo foi para diretor do Diário de Notícias (DN) – com o Silva Costa, que foi presidente do Clube de Jornalistas – e eu estava no andar de baixo, como diretor do MD, com um contrato que especificava: subchefe de redação do DN em comissão de serviço como diretor do MD. Quando saí do DN, fui fazer o Se7e. Fui o primeiro diretor – nunca tinha começado um jornal do número 1 – a convite do José Carlos de Vasconcelos e da malta d’O Jornal, em que fiquei como redator.

PM – Deixa-me ir um pouco atrás, ao impacto da Censura num jornal como O Século. Sentiste-o bastante? O chefe de redação era decisivo no contacto com os censores.

MZ – Tinha um telefone direto para a Censura. Havia aquelas queixas naturais: “Cortaram-me isto aqui! Não faz sentido nenhum, nem sequer do vosso ponto de vista, quanto mais para o meu!”. Tínhamos este choque permanente. Sempre vi a Censura com três graus de rigor – ou de permissão. Havia jornais em que eles não permitiam quase nada. O DN, da Portugal e Colónias, estava controlado. O Século podia ter um bocadinho mais de tolerância. O Diário de Lisboa (DL) também.

EA – O DL tinha mais tolerância?

MZ – Mais do que O Século. Nem se compara! Quando conseguimos meter n’O Século o Augusto Abelaira – tinha um retângulozinho na primeira página –foi uma conquista. O Século teve alguma conquistas, mas o Lisboa tinha mais. 

PM – A Censura era mais tolerante com o DL do que com O Século?

MZ – Sim.

EA – Naquelas reportagens que o grande repórter Mário Zambujal fez [para o DL] na União Soviética, quando foi acompanhar o Benfica – ou a seleção, já não me lembro – a Censura não deu uma grande poda?

MZ – Deu. Eu não disse que não havia censura ao DL. Era considerado o jornal de uma certa esquerda.

MFL – Do reviralho…

EA – Do reviralho era o República.

MZ – E o DL um bocadinho. Tinha um passado, uma equipa…

Mário Zambujal. Fotografia: José Frade

MFL – Voltemos aos três níveis de permissão.

MZ – O Século tinha um nadinha menos de rigor (no sentido da ação da Censura) do que o DN.

EA – Dava muitas notícias da “província”, que não provocavam choques na capital. Era o jornal com mais informação, mais correspondentes no país.

MZ – Quando chegava, sentava-me – ainda não tínhamos feito nada – e havia três jornais: o dos correspondentes, milhares a despejar coisas; o das agências; e o que a malta ia fazendo. Tempos houve em que na Volta a Portugal em Bicicleta, alguém na redação controlava o mapa de Portugal. À medida que os ciclistas iam avançando, os correspondentes locais davam notícia do percurso: “Agora, passou aqui o 27…” Era feito assim, nem sequer havia enviado especial. E aquilo batia certo. Claro que hoje nos rimos disso. Mas há coisas que eram bons exemplos de organização. Por exemplo: o que recebiam os correspondentes, que eram as pessoas ilustres da terra? O jornal de borla. Havia cerca de 3000. Também não é preciso, porque as comunicações são diferentes. Isso leva-nos à vida do Clube. O Clube vai sendo conduzido conforme as épocas. Há 30 anos, já existia. Não havia redes sociais, nem telemóveis. 

MFP – Para os jornalistas, foi a primeira rede social?

MZ – De certo modo, foi. Conduzir este Clube tinha a ver com o meio em que estávamos. Agora, o meio não é tão associativista como era nesse tempo; as pessoas estão mais dispersas, mais separadas. Fazem muito mais contactos pelas redes sociais.

PM – Preocupa-te esse isolamento, o facto de as pessoas estarem viradas para um computador, em vez de contactarem umas com as outras?

MZ – É a desumanização. As pessoas dizem: “Conhecemo-nos bem, já falámos pelo Facebook, mas nunca nos vimos”.

PM – Viveste um tempo em que havia uma “rede territorial”, o Bairro Alto. Saías da redação às 2 ou 3 da manhã.

MZ – Tenho duas fases de Bairro Alto: o DL, onde entrava às 8-8 e meia da manhã e saía às 10 da tarde; e O Século ou A Bola, matutinos, de onde saía às 3-4 da manhã, a hora a que fechavam. O chefe de redação tinha de lá estar o tempo todo. Trabalhava todos os dias 12 horas. Os meus dois subchefes de redação, Hernâni Santos e Silva Pinto, trabalhavam diz sim, dia não, 12 horas. Eram bons tipos e chegavam sempre frescos. Quem trabalha dia sim, dia não, está sempre fresco.

PM – Como conseguiste passar pelo conflito de 1974-1975 n’O Século sem estar de um lado contra o outro? É mesmo a tua maneira de ser?

MZ – Estar de um lado já significa estar do lado da desunião. A minha preocupação era unir – chamá-los todos à minha razão, que era O Século apanhar a horas o comboio para seguir para o Norte. A minha luta era essa. Quando perdêssemos isso de vista, em guerras ou guerrinhas às vezes completamente estúpidas, já não havia jornal no Norte – ou chegava na tarde do dia seguinte. Esse lado profissional era fundamental. Quando esquecemos estas pequenas coisas, que parecem secundárias, porque há grandes ideologias, grandes lutas… Temos todos de ceder alguma coisa para o jornal sair.

EA – Houve um momento nessa experiência de O Século em que puseste os pés à parede, juntaste o pessoal e ordem na casa. Conta lá.

MZ – Era um tempo muito difícil para as pessoas estarem dissociadas do seu pensamento político.

PM – Não era possível a neutralidade, é isso que dizes?

MZ – Um tipo não é neutral! Pessoalmente, individualmente, eu não era neutral. Mas enquanto responsável pela edição do jornal, esse era a única parte que me agarrava. Eram tempos muito agitados. Fizeram-se muitos disparates, de parte a parte. Um dia, já em 1976, estava na praia a apanhar e um tipo que tinha sido um dos jornalistas d’O Século mais ativos nas lutas disse-me: “O chefe é que tinha razão; isto deu raia!”. Para mim, teria sido muito mais cómodo alinhar com uns ou com outros. Mas fui sempre um desalinhado – profissionalmente, é claro. Sou muito rigoroso; tenho a escola do Le Monde: notícias são factos puros e duros, a opinião é livre e normalmente assinada. Ser desalinhado não significa que não seja nem carne, nem peixe, porque como cidadão sou um homem de Esquerda. Nunca me filiei num partido. Dou a importância que dou aos políticos, que têm importância porque gerem o país. Acho que tenho uma certa qualidade de pensar a frio.

PM – Na altura, pensar a frio era uma grande virtude.

MZ – A seguir, que tempo veio? Um tempo em que teve de se pensar a frio. Era melhor ter pensado a frio antes, quando as coisas estavam muito quentes – algumas, porque isto não é assim tão linear. Houve coisas que se fizeram e disseram que não tinham sentido, do meu ponto de vista.

MFP – Dê lá um exemplo.

MZ – Eh, pá!

EA – Conta-nos histórias, Mário!

MZ – N’O Século – naquele casarão, com um salão de baile que dava para jogar hóquei em patins – faziam-se então grandes plenários. “Temos um plenário às 11 [da noite]”. E eu pergunto: “Quem vai?”. “Os trabalhadores!”. “Os trabalhadores têm de estar a trabalhar! Se houver um plenário às 2 da manhã, eu estou lá. Mas não vou largar o trabalho às 11 da noite. Nem eu, nem os que têm consciência de que são trabalhadores”. A coisa caiu mal… A minha responsabilidade era tanta! O diretor d’O Século era o Manuel Figueira, que tinha escrito discursos do Moreira Baptista, quando foi presidente da Câmara de Sintra.

PM – Era um homem do regime deposto, mas com quem tinhas boa relação.

MZ – Não só eu! O Urbano [Tavares Rodrigues], o Abelaira. Todos! 

EA – Quando estive preso, defendeu-me. E disse-me que teria lugar no jornal, quando saísse, se houvesse problemas.

MZ – O Manuel Figueira era sagrado. Queres uma história, Eugénio? Há um jogo em Alvalade em que o Marcello Caetano é recebido como herói. Como a situação andava turva, o regime rejubilou.

MFP – Isso aconteceu quando?

MZ – Pouco antes do 25 de Abril. Às segundas-feiras, publicávamos sempre na primeira página uma fotografia a remeter para o suplemento desportivo. E o Manuel Figueira disse: “A fotografia de hoje é do presidente do Conselho em Alvalade”. Eu disse-lhe: “Ó Manel, o Nené marcou três golos!”. Claro que saíram duas fotografias, do Nené e do Marcello Caetano. Tenho muitas saudades d’O Século! E do DL também, onde a quase totalidade dos jornalistas era de esquerda, enquanto n’O Século havia tipos mais à direita e tipos mais à esquerda. Quando entrei para chefe de redação, o Manuel Figueira disse-me para fazer uma lista das pessoas que queria levar para o jornal – e ele também fez. Em ambas as listas o primeiro nome era o mesmo: Adelino Tavares da Silva. 

MFP – Mulheres é que não estavam.

EA – Havia as da Modas & Bordados, que ele dirigiu.

MFP – Tem de contar essa história.

MZ – Uma vez [em 1975], sou chamado à administração, então presidida pelo dr. Francisco Sousa Tavares, pai do Miguel. Só fui chamado duas vezes. Uma, por causa dos vales à caixa do Adelino Tavares da Silva – ele cortou um. Disse-lhe: “Senhor dr., ele já ganhou este dinheiro. Estamos no dia 20 e ele só pediu dinheiro de dia 10 (risos) Nós é que somos durante 30 dias credores da empresa!”. Ele cedeu. Da outra vez, foi porque as senhoras da Modas & Bordados – a [Maria Antónia] Fiadeiro, a António de Sousa, a Susana Rute Vasques e as outras – que sanearam a diretora. Eu tentei explicar-lhes que sanear é tornar são. Pode-se sanear o lugar, mas não a pessoa. Se fulano foi saneado, quer dizer que ficou bom. O Sousa Tavares disse-me que elas só faziam a revista se eu fosse para diretor, que era a única maneira de unir. Fiquei diretor interino, com duas condições: nunca ir à redação e mudar o título da revista, passando a chamar-se Mulher, tendo por baixo a referência Modas & Bordados para manter a ligação com o passado. Assim foi. Depois, disse que queria outra coisa: ir a Évora convidar a dra. Maria Lamas, que inventou a revista e foi uma grande combatente contra o regime, para diretora honorária. Meti a redação toda no meu carro e fomos a Évora.

MFP – Cinco mulheres faziam a revista inteira!

MZ – Tínhamos outras mulheres no conjunto das empresas: a Diana Andringa, a Maria Antónia Palla…

MFP – “Gosto do funcionamento da cabeça de uma mulher” – disse isto ao Expresso em 2009. Foi a primeira vez que encontrei um homem a dizê-lo. Quero saber o que o Mário quer dizer.

MZ – Acho que as mulheres têm outro modo de ver as coisas, alguma argúcia. E fazem um esforço mental que o homem não tem de fazer. Isto era mais antigamente, porque a mulher não era concorrencial e agora é. Veja-se a quantidade de mulheres que ocupam hoje lugares relevantes. Já há mais juízas do que juízes, o que era impensável. Em tempos, fui à TVI. Entrei na redação e só havia um homem. Até disse: “Quando quiseres ir embora, dá-me o teu lugar”. Sempre achei que as mulheres têm uma forma peculiar de olhar as coisas, que lhe advém da sua milenar subalternidade. Aprenderam a jogar judo em vez de boxe, para dar a volta aos homens. Nos meus livros – não escrevo livros, escrevo histórias – abordo sempre o conflito ou a aproximação homem-mulher, uma coisa de todos os tempos. Os marialvas, os engatatões, as conquistadoras… É um tema inesgotável na história da humanidade… (pausa) Agora, esqueci-me do que ia dizer. Isto acontece-me a mim, um rapaz de 85 anos. O que não quero é ficar de mal comigo mesmo por uma coisa que disse e agora rejeito. Digo que gosto muito da noite. À noite, não há moscas. E não há relógios. Ninguém diz às duas horas da noite: “Tenho de me ir embora, porque tenho uma reunião”. 

MFP – Hoje, para saber o que se passa no mundo, o que lê, o que ouve, o que vê?

MZ – Leio menos do que seria pressuposto. Vejo mais televisão do que gostaria de ver, porque é uma coisa passiva. Gosto de filmes, de ver futebol, de ouvir música, de rádio.

MFP – Para saber o que se passa no mundo, é através da televisão?

MZ – E dos jornais em papel, que tenho muita pena de estarem ameaçados de extinção, porque faz parte da minha maneira de ser tomar o pequeno-almoço e ler o jornal, pela manhã.

Mural em homenagem ao jornalista Mário Zambujal, em Benfica.

MFP – Se fosse jornalista no ativo, onde se via a trabalhar, a contar que histórias?

MZ – Teria de ter em conta que não tenho nenhum domínio das tecnologias. O que posso é ter ideias sobre como fazer as coisas. Posso ser crítico, negativa ou positivamente, de uma entrevista ou um debate. É a minha sensibilidade, a minha maneira de ver, que corresponde ao que seria a minha maneira de trabalhar.

MFP – Foi muitas vezes chefe. O que mandaria fazer hoje, o que acha que faz falta?

MZ – Tenho a sensação de que o jornal não pode ser a ata do dia – aconteceu isto, está aqui. Tem de se antecipar e ter uma visão mais alargada sobre os dias que vêm aí. Uma vez, fiz um programa na televisão que se chamava “A semana que vem”. No dia 22, fazíamos uma peça, diferente, sobre o que se iria passar no dia 27. Era uma antecipação, mas também com intenção de perceber, quando chegasse o dia, se corria tudo como planeado.

MFP – O que gostaria hoje de fazer se fosse hoje um jovem jornalista?

MZ – Crónicas. Um jornal tem o seu livro de estilo, comum à redação. A crónica representa o individualismo. No Le Monde de que eu gostava, era o espaço assinado. No noticiário, parecia tudo escrito pela mesma pessoa; não havia juízos de valor, nem adjetivos. Mas naquele quadradinho havia um gajo que podia mandar vir. E sabia-se quem era o responsável.

MFP – Era o que gostaria, de fazer uma crónica para mandar vir? A crónica podia chamar-se “mandar vir”.

MZ – Podia ser. 

EA – Há 40 anos, o Nobel da Literatura foi atribuído a um grande jornalista, que numa entrevista em Lisboa disse que usaria o dinheiro do prémio para fazer um jornal, a que chamaria “El otro”. Ou seja: um jornal diferente, que teria de ter histórias; não podia dar só notícias. Era o Gabriel García-Márquez.

MZ – Eu, antes de saber escrever uma notícia, já tinha escrito muitas histórias. Histórias da vida, das pessoas. Aqui está uma coisa que não aconteceu, mas poderia ter acontecido.

MFP – Se estivesse no ativo, por quem gostaria de ser chefiado?

MZ – Dos atuais?

MFP – Ou não gostaria de ser chefiado?

EA – Ele sentiu-se muito bem na Modas e Bordados

MFP – Pois, não fez nada! Não ia lá, pôs uma mulher a chefiar.

MZ – Há jornalistas que sempre admirei. O Baptista-Bastos era fantástico, mas acho que não seria bom chefe. Uma vez, o Ruella Ramos, no DL, onde eu era subchefe, disse-me que era bom demais para chefiar, que ser tolerante demais. Há quem diga: “Bolas, o gajo quando se chateia é o diabo!”, porque também sou muito tenaz na defesa dos meus princípios, das minhas opiniões. Não cedo facilmente.

EA – Sou testemunha disso. Então quando se trata do Benfica… (risos)

MZ – Lá ‘tá ele com o Benfica! Voltando à chefia. Parto sempre do princípio: este tipo está a dizer o contrário do que eu penso, não terá ele alguma razão? Tenho de analisar as coisas. Nunca tive problemas em dizer: “se calhar tens razão. Ou tens quase meia razão, porque a maioria da razão é minha”. Acusavam-me de ser demasiado conciliador e é verdade. Se o trabalho é conjunto, é preciso procurar uma conciliação. O Cunha Rego, no DN, disse uma vez que eu era um daqueles gajos que, quando há um incêndio e está toda a gente de cabeça perdida, pergunta “onde está a chave da porta, para sairmos daqui?”. Eu procurava a chave. Não digo isto por achar que sou bestial. Continuo a ser um conciliador. Tive com certeza discordâncias e pequenos conflitos.

EA – Um dia, fiz no DL uma crónica de um jogo Portugal-Suécia de basquetebol feminino. As nossas levaram uma banhada! Escrevi uma crónica engraçada, em que falava das mãos esticadas das suecas altíssimas. O Mário, com ar de califa de Bagdad, entra na sala com o Assis Pacheco e diz: “Que crónica engraçada, muito bem! E, já agora, qual foi o resultado do jogo?” (risos) Isto é o Mário! Se fosse outro, diria: “que merda é esta?”.

MFP – Lembras-te do resultado, claro.

EA – Não me lembro nada! Era para aí uma diferença de 50 pontos!

MZ – Era secundário, porque o que estava em causa era a diferença do jogo.

PM – Fake news também existiam no teu tempo, Mário. Mas desinformação organizada, com fins políticos, não. Como vês este fenómeno?

MZ – Vejo com preocupação alguém estar constantemente a tentar enganar-me e a tentar enganar os outros. É preocupante e desgostante. O que é necessário para um tipo se portar como um ser humano decente, no sentido da cidadania? É miserável! Eu seria incapaz de escrever uma mentira para enganar alguém. Faz-me impressão como é possível! Mas sei que atravessamos uma fase da nossa existência coletiva na qual acontecem muitos atropelos ao que deveria ser um comportamento normal entre as pessoas.

PM – Como é que os jornalistas se podem defender disso? Hoje, qualquer pessoa pode produzir informação e distribuí-la.

MZ – Denunciando e contrapondo a verdade do jornalista, que tem a responsabilidade de ser um comunicador para a sociedade. Bem sei que é muito mais difícil ser jornalista hoje. Há pessoas que dizem “eu sei tudo, leio o Facebook todo”.

PM – Dantes, dizia-se: li n’O Século ou no DN, agora é li na internet.

MZ – E até, muitas vezes, se identificava o autor. No meu tempo do DL, havia tipos que compravam o DN e diziam “Dá-me aí o [Mário] Castrim” – era o que queriam ler. Esta capacidade do cronista individual de ser um trunfo é uma coisa que os jornais terão de refinar. Há nomes na nossa sociedade de comunicação que vendem. 

EA – Agora, as notícias são ultrapassadas numa hora. A opinião, quando é de qualidade, marca a diferença.

MFP – O que é que os jornalistas hoje estão a falhar, em que é que não pensam?

MZ – Dá-me a sensação de que andam um bocado desorientados. São as redes sociais, é o patronato, são os salários, a quebra de tiragens – e os jornalistas perdem força. Quando o chefe diz que estamos a vender cada vez menos, está tudo estragado. As televisões, quase sem exceção, estão a enveredar por uma coisa que antigamente era uma raridade, o crime. Hoje em dia, de 10 em 10 minutos estamos a ver um crime na televisão.

MFP – Porquê?

MZ – Porque o respeitável público quer isso, gosta disso. Por algum motivo se imitam umas às outras no noticiário do crime. É o que vende. São histórias. E, depois, há o dramático das coisas.

MFP – A história do Alec Baldwin, ator norte-americano que matou a diretora de fotografia porque a arma de cena estava carregada. É uma história que não se acredita…

MZ – É uma história de ficção que na vida real acontece, às vezes. A pesquisa jornalística pelo dia a dia – como vivem as pessoas, como se matam – leva a revoluções no ato de informar. Os ouvintes, os leitores, os espetadores, gostam de histórias.

EA – O crime dá sempre histórias.

PM – Vamos falar do Clube de Jornalistas?

EA – A história do Clube é uma boa história. O Mário foi sempre pouco atreito a instituições. A instituição dele era o jornal e o Tamila.

MZ – Eu era muito amigo do Júlio Matos Moura, o “Juquinha”, primeiro empresário da Amália e treinador de andebol do Sporting. Levava a equipa a beber um copo no Tamila.  Uma vez por outra vi lá mulheres… Não que eu me impressionasse com isso! (risos) Dizia sempre aos meus repórteres: um gajo tem de ir preparado para um incêndio no bairro das barracas ou para um banquete no palácio de Queluz. Tem de ser capaz de se desenrascar e adaptar-se a todos os ambientes, para os contar e descrever. A noite de Lisboa era o que era. Havia meia dúzia de boîtes e bares. Os encontros da malta noctívaga que, como eu, saíam desgraçadamente tarde do trabalho e queriam ir jantar às duas ou três da noite. As casas que para uns eram um lugar de festa, para mim era um lugar de me ir alimentar, coitadinho, comer um bifinho… (risos)

EA – O que eu estava a dizer é que com o Mário era mais de um barzinho. Mas com o tempo, com a idade e como já estava um bocado empatado da vida…

MFP – Empatado?

MZ – Sim, criámos uma tertúlia, a que demos o nome de “Os Empatados da Vida”, porque achámos que era excessivo sermos os vencedores.

MFP – Era o Mário e mais quem?

MZ – O Eugénio Alves, o Baptista Bastos, o Mário Ventura, o António Borges Coelho, o Vítor Bandarra, o José Manuel Saraiva. 

MFP – Só homens…

EA – Mas convidávamos sempre mulheres. Nós estávamos empatados e as mulheres desempatam. Foi para aí em 1999 que a tertúlia começou. 

MFP – O que faziam os “empatados”?

MZ – Falávamos do dia-a-dia, de livros e do “então, já sabes?”, um caso do dia que dava conversa. Ouvíamos o Baptista Bastos, com os seus amores e desamores. Falávamos muito do passado. Eu, agora, acho inútil muitas vezes falar do passado.  É um dos sintomas de da idade: temos muito para dizer, mas do que ficou para trás. Na maior parte das vezes, não é uma recordação proveitosa… Não posso dizer que os jornalistas não convivem tanto como no meu tempo. Não sou testemunha do que se passa agora.

PM – Mas sentes que há menos debate nas redações?

MZ – Sim. Tenho a sensação de que agora os jornalistas estão à espera da hora de saída – e se calhar com razão, porque já estiveram a ser violentados com trabalho duro. E há outra coisa: dantes, era raro o jornalista que tinha carro. De maneira que às vezes ficavam no jornal mais tempo, a fazer sala à espera de transporte. 

PM – Isso criava laços para além do profissional.

MZ – Companheirismo, sobretudo companheirismo. Convivi com pessoas que iam desde o marcelismo até uma esquerda mais avançada, muito avançada.

MFP – Esquerda avançada. Isso é linguagem futebolística.

MZ – Na RTP, no Lumiar, havia umas mesas muito compridas onde a malta ia almoçar. Às vezes, ficavam os piores adversários lado a lado, porque era ali que havia lugar para se sentarem. O convívio era muito importante.

EA – Aquelas histórias que nós fizemos no “Diário de Lisboa” ao Sttau Monteiro e até ao almirante Pinheiro de Azevedo…

MZ – Diverti-me muito com o Sttau Monteiro. A certa altura, éramos só os dois a fazer o suplemento semanal “A Mosca”. Um dia, fomos convidados para ir à faculdade de Letras ou de Direito. “Até que enfim que alguém reconhece o que fazemos, pá!” E fomos. Apanhámos um arraial de porrada. Chamaram-nos tudo: colaboracionistas, tipos feitos com o regime, porque parecia que o país estava bem e estava péssimo. Disseram que o país era altamente de direita e o que nós fazíamos era distrair as pessoas, com graçolas.

EA – A tertúlia, que durou bastantes anos, criou amizades.

MZ – Também fazia parte o João Paulo Guerra.

EA – Era um grupo espantoso! Eu andava com o Clube às costas há muitos anos e comecei a namorá-lo. A situação financeira estava boa, o que para ele foi fundamental. A primeira vez que o Cavaco Silva veio ao Clube, ainda eu era presidente e aproveitei para lhe dizer que o Mário é que ia aguentar este barco. Como são velhos conhecidos, do Algarve… O Mário assumiu a presidência do Clube com paixão.

MZ – Um tipo marca, pela sua personalidade, aquilo que está a conduzir, em que tem responsabilidade. Admito perfeitamente que digam que, nestes anos, o Clube foi… não digo passivo, mas que não criou coisas novas. Eu tinha a mania das contas certas, não é? E perante algumas ideias que apareceram, perguntava: “quanto é que custa? Quem é que paga?”

MFP – Agora vou ser eu a fazer essa pergunta.

EA – Foi numa fase a situação da classe estava a deteriorar-se. As redações saíram da cidade…

PM – E manter os projetos já foi uma grande vitória!

EA – O trabalho está cada vez mais precarizado e pior remunerado. Manter o Clube – revista, site, prémios – com todas estas dificuldades e neste contexto é uma obra meritória.

MZ – É óbvio que o Clube não se pode alhear da situação atual do jornalismo e dos jornalistas. A revista cumpre plenamente esse papel. Não se pode ser Clube de Jornalistas e viver à margem da classe, como um escol, uns iluminados. Os Prémios Gazeta, ao receberem a diversidade de trabalhos que recebem, contribuem para a ligação à classe. Às vezes, diz-se Clube dos Jornalistas, mas não é. É de jornalistas. Não estão cá todos, mas todos podem concorrer aos prémios, mesmo os não sócios. Quanto ao futuro, precisamos de ter mais atividades e iniciativas e, sobretudo, temos de conseguir ser mais financiados. É um trabalho delicado, cativar a classe, para dizer que o Clube é deles e pode ser mais deles se se associarem. A quota é simbólica – tão barata que vem do século XIX, sei lá… Mas pertencer ao Clube deve dar prazer. Prazer é a palavra.