Fernando Dacosta | “Há uma guerra contra a palavra escrita”

Fernando Dacosta. Fotografia: Inácio Ludgero

Jornalista de Imprensa num tempo em que, recorda, as redações eram divertidas, Fernando Dacosta olha para a realidade atual com ceticismo: “Estou convencido de que hoje não conseguiria fazer carreira nos jornais. Ninguém tem opiniões, é um ‘nim’. E não há segurança nenhuma!”. Para o Gazeta de Mérito de 2021, é urgente dignificar a profissão. “Se uma sociedade quer ter informação séria, credível e livre tem de investir. O único caminho é investir na valorização dos jornalistas”.

Eugénio Alves e Paulo Martins Texto
Inácio Ludgero Fotos

Iniciaste a carreira em 1967, na delegação da Europa Press em Lisboa. 

Fui convidado pelo dr. Carlos Mendes Leal, que creio ter sido o primeiro português a tirar um curso de Jornalismo em Madrid, numa universidade da Opus Dei. A minha perspetiva era ser professor de Liceu – Românicas era para isso que dava –, mas não tinha muita pachorra para ser professor. Achei graça às redações dos jornais! Naquela altura, eram muito divertidas, ao contrário do que são hoje. Estive então em Espanha a aprender – até fotografia. Gostava do trabalho de laboratório, mas comecei a sofrer a pressão dos repórteres-fotográficos.

Estavas a entrar na coutada…

Aquilo era uma máfia (risos). Por isso abandonei a fotografia. Os repórteres-fotográficos estavam muito bem organizados. Reivindicavam e eram bons. Ganhavam mais do que os jornalistas da escrita!

E eram muito solidários.

Muito! Foi assim que comecei, na Imprensa estrangeira, o que me deu acesso a Salazar, que por essa altura recebeu a Imprensa estrangeira – a guerra colonial afetava a imagem externa de Portugal. Fui, porque trabalhava na Europa Press. Se trabalhasse num jornal português, não iria. Foi a repórter-fotográfica Beatriz Ferreira que me apresentou ao Salazar. Ele disse-me uma coisa de que não gostei nada: “Você é o novo recruta da informação” (gargalhada). Tive a sorte de cair nas boas graças de quem mandava em Portugal naquela altura, a governanta do Salazar, Maria de Jesus. Fui para a [revista] Flama. E depois para a revista Notícia, de que gostei muito, com a Edite Soeiro. Era um projeto muito interessante, com uma redação extraordinária – o Herberto Hélder, o Cardoso Pires, o Luiz Pacheco… O único que controlava o Luiz Pacheco era o Herberto Hélder, que tinha muita paciência. Daí, fui para o Diário de Lisboa, a convite do Cardoso Pires, onde apanhei o 25 de Abril.

Que memórias tens das redações no tempo da Ditadura. Eram um espaço de liberdade possível?

Eu sempre fui muito preguiçoso. Só se trabalhava cinco horas. A gente entrava às 8, estava uma hora a ler os jornais, outra hora a dizer mal do Governo e, depois, íamos para os cafés, para A Brasileira. Era nos cafés que se sabiam as notícias.

As tertúlias eram mais interessantes do que as redações?

Havia tertúlias nas redações, que eram povoadas pelos grandes vultos da cultura. O Diário de Lisboa era o grande jornal de Esquerda. E havia camaradagem. Quando faltava papel ao República [da oposição], o Diário da Manhã [do regime] emprestava-lhe – e vice-versa. Quando um de nós era preso, todos os jornalistas, mesmo os da “Situação”, solidarizavam-se. A camaradagem era superior aos posicionamentos políticos.

Quando um falhava a notícia, outro passava a informação.

Posso contar uma história extraordinária, do tempo em que trabalhava na Europa Press. Quando vieram a Portugal o Louis Armstrong e a Ella Fitzgerald, eu atrasei-me. Quando cheguei ao Monumental, já estavam os nossos camaradas a sair. A Maria Leonor, acompanhada de um tipo com um grande gravador, pregou-me um grande sermão. Mas, atrasando o serviço dela, passou-me a fita para eu tomar apontamentos. Havia camaradagem! 

Falavas do quotidiano dos jornais.

Como eu dizia, ao fim da manhã regressávamos. Percebíamos como os censores funcionavam, escrevíamos e, depois, tínhamos o resto do dia e a noite livres. Os cafés estavam abertos até às quatro da manhã. Lisboa era uma cidade muito divertida. Fico espantado quando falam da longa noite do fascismo. N’A Brasileira, metade era para os pides, metade para o “reviralho”. O inspetor Seixas, que tinha a mania que era engatatão e intelectual, entrava e tirava o chapéu para o “reviralho”: “Boa tarde, meus senhores!”. E o Aquilino Ribeiro: “Filho da puta!” (risos). Um dia, vieram ter comigo dois pides e disseram-me que o inspetor me queria dar uma palavrinha. Lá fui à António Maria Cardoso. Enquanto esperava, ouvi os pides a dizerem mal do Governo, porque não pagava horas extraordinárias. Conhecíamo-nos todos uns aos outros.

Também treinavas truques para enganar a Censura?

Sim. Os censores, coitados, eram uns pobres diabos. Uma vez, fui ao gabinete do tenente Nazaré, que era diretor da Censura. Tinha na mesa as provas. “Às vezes, até tenho dor de alma por cortar certas coisas”, disse. E eu: “Então porque corta?”. “Ai, é uma chatice! Isto é um ganchinho que me dá muito jeito” (os censores eram militares reformados). “Se a gente deixa passar certas coisas…”. Perguntei se era por causa de Salazar e ele respondeu: “Não, não, o dr. Salazar é um santo!” – todos diziam que o Salazar era um santo! “A nossa grande dor de cabeça são as amantes e as mulheres dos ministros. Os ministros telefonam… Se cortarmos demais, não há problema nenhum!”. O tenente Nazaré admirava o José Saramago, que era muito habilidoso na escrita. O Sttau-Monteiro é que lhe dava cabo da cabeça, com as “redações da Guidinha”. Fazia um texto que dava ao paquete para ir à Censura. A Censura cortava e quando o paquete chegava à redação já tinha outro. Aí à sétima [versão], o pobre do censor já estava doido e deixava passar. O Sttau vencia pelo cansaço! Só tenho a dizer bem desse ambiente de redação, dos grandes vultos – o Batista-Bastos, o Mário Ventura Henriques, o Urbano Carrasco, um grande repórter, que até era do regime. Só havia um problema: não admitiam mulheres, porque com elas presentes não podiam dizer palavrões.

Havia meia-dúzia de mulheres jornalistas e agora são a maioria… E no pós-25 de Abril? Estiveste em várias redações…

Cometi uma asneira: saí do Diário de Lisboa e fui para A Luta. Foi pior a emenda que o soneto! Como A Luta teve muito êxito, a Internacional Socialista – o Willy Brandt e o Olof Palme – deram ao Partido Socialista 60 ou 70 mil contos para fundar um novo jornal. O que fizerem? Em vez de instalarem a redação no centro da cidade, foram para o Dafundo, para estarem perto das casas deles, que moravam na Linha. Um dia, estava com o Vítor Direito, um grande cozinheiro de jornais. Tinha subido o preço do pão, coisa que o Salazar nunca autorizara. Toca o telefone. Era o Mário Soares, primeiro-ministro, e eu assisto a uma cena extraordinária. O Vítor Direito pega no telefone: “Hum, hum… Vá bardamerda!” E desliga. Acabou-se tudo e ele foi montar um negócio, o Correio da Manhã. Não havia então um jornal com aquelas características. Fartou-se de ganhar dinheiro! Eu, d’A Luta, fui para o Diário de Notícias. Gostei muito! Por fora, muito sorumbático, mas por dentro uma redação engraçadíssima – com o Melo Lapa, o Vale de Almeida, que hoje é embaixador, o João Amaral, o Fernando Diogo, o João Gomes… 

Ainda estiveste muito tempo no Diário de Notícias

Sim. Depois, fui para O Jornal, depois para o Público – sou um dos fundadores. O Belmiro [de Azevedo, empresário que liderava a empresa proprietária] nunca pôs problema nenhum ao jornal. A malta gastou ao Belmiro cinco milhões de contos! Andámos pelo mundo inteiro, onde havia jornais de topo. A Teresa de Sousa dizia: “O jornal, no fim do ano, está a vender 200 mil”. Se vendesse 30 mil, já seria muito bom. O Belmiro e o Vicente tinham um acordo: nunca contactavam diretamente um com o outro; havia sempre um terceiro, para não se irritarem. Mas um dia tiveram um encontro num hotel, em que estavam outras pessoas, numa fase em que o jornal dava imenso prejuízo por mês. O Belmiro diz: “Isso não me preocupa nada. O que vou descontar nos impostos compensa esse prejuízo”. A rentabilidade de um jornal não é só económica, também é política e social… “Isso sei eu! Antes de ter o jornal, era conhecido pelo Belmiro dos supermercados. Agora, tenho o estatuto de intelectual e vou fazer conferências a universidades. Se pagasse do meu bolso, pagava mais”.

Passaste ainda pela Visão.

… Onde as coisas se degradaram quando nas reuniões de planeamento o departamento de publicidade começou a aparecer, a vetar temas e a sugerir outros, para ir buscar publicidade. Isto é o contrário de tudo o que eu defendo. Pedi a demissão e abandonei o Jornalismo.

Quando recebeste, em 1984, o prémio do Clube Português de Imprensa, foste entrevistado pelo Mário Zambujal, para a RTP. A certa altura, disseste: “é mais difícil fazer Jornalismo em Portugal do que escrever ficção. Até porque as condições de trabalho dos jornalistas estão muito más”. Passados quase 40 anos, qual a tua perceção da situação atual?

As condições pioraram muito! Estou convencido de que hoje não conseguiria fazer carreira nos jornais. Ninguém tem opiniões; é um “nim”. Nas estruturas do poder, ninguém é autorizado a falar aos jornais; tem de ser sempre um indivíduo qualquer, que vende o peixe à vontade dele. E não há segurança nenhuma! Os jornalistas afirmados foram todos emprateleirados e deu-se a entrada nos jornais dos jovens a recibos verdes.

Muitas vezes, em estágios não remunerados.

E que se não dão os améns aos editores não lhes renovam os contratos. Logo, não têm segurança nenhuma, o que é inacreditável. Só pode haver Jornalismo com jornalistas competentes. 

E com autonomia…

A autonomia vem da independência. Eu era bem pago. Antes do 25 de Abril, no Diário de Lisboa, ganhava 17 contos por mês, quando o ordenado médio era de quatro ou cinco contos. 

A questão não é só salarial. Achas que se perdeu o estatuto associado à profissão?

Os jornalistas, antes do 25 de Abril, tinham um estatuto social muito importante. Eram respeitados, até pela “Situação”. O Salazar tinha má consciência em relação à Imprensa, porque também tinha sido objeto de censura quando era estudante em Coimbra, com o Cerejeira. Então, tentou compensar-nos com regalias. Tínhamos muitas regalias sociais: 50% nos transportes públicos, terrenos para construir casas e uma assistência de grande qualidade, prestada pela Casa da Imprensa. Quando foi apresentado a Salazar o projeto da Casa da Imprensa, ele disse que a instituição não poderia sobreviver só com as quotas dos associados. Terá sido ele próprio a sugerir a criação do adicional sobre a publicidade. A Casa de Imprensa tornou-se próspera e garantimos durante décadas a assistência. Andei anos a descontar e veio o Sócrates e roubou-nos isso. Nem sequer dava despesa ao erário público, como verifiquei quando fui dirigente da Casa da Imprensa. Foi por pura maldade, para quebrar as pernas aos jornalistas e a sua independência! Só há bom Jornalismo investindo. Não vale a pena fazerem leis; invistam na dignificação do jornalista. É como num restaurante. Quem faz um restaurante é o cozinheiro, agora promovido a chef, com estatuto. A nós, fizeram o contrário, para nos dominar.

Os condicionamentos são sobretudo políticos ou sobretudo económicos?

Políticos e económicos. Com a estória da objetividade, que se destina a interiorizar mecanismos de autocensura. Aquele modelo anglo-saxónico matou muito a genuinidade do Jornalismo português. A Antena 2 tem um programa chamado “Há 100 anos”, em que são lidas notícias de há um século. Curiosíssimas, muito bem escritas, com sentido de humor, muito apelativas. Esse Jornalismo, que era um pouco opinativo, foi subalternizado por esses modelos, que impedem a riqueza da informação. O Carlos Veiga Pereira, dos jornalistas mais cultos e mais irónicos que conheci, dizia que a Censura não acabou com o 25 de Abril; foi privatizada. Passou de um organismo de Estado para as administrações e direções dos órgãos de comunicação.

Tornou-se mais subtil…

Não se chama censura, chama-se manipulação.

As direções não têm autonomia, nem querem ter.

As direções e as hierarquias são postas nos lugares não pela sua competência profissional, mas por compadrio político, partidário ou económico. Daí o decréscimo de qualidade a que temos assistido na informação. Inventaram essa estória da Comunicação Social, que como dizia o Batista-Bastos não sei o que é. São os correios, os comboios? Sei que é uma espécie de guarda-chuva, para tapar todo o tipo de safadezas, de corrupções, de manipulações. Só me admira as pessoas não reagirem!

Ainda antes do 25 de Abril, elegíamos comissões de redação. Depois, os conselhos de redação foram legalizados e o diretor tinha de ter o seu parecer favorável. Isso acabou!

Apesar de se manter na Constituição o direito participação dos jornalistas na orientação editorial, através dos conselhos de redação.

Pois, mas ninguém lhes liga nenhuma.

Hoje é difícil, porque serem membro de um conselho de redação ou delegado sindical representa uma exposição que muitos jornalistas não querem ter. Têm receio…

A Natália Correia tem um texto notável em que afirma: “Tão censura é impedir de dizer, como obrigar a dizer”. Essa questão colocou-se sobretudo a partir do caso Casa Pia. Num tema assim, sensacionalista, os jornais vão espremendo. Mas não chamam para a cobertura o velho jornalista, porque ele não vai na conversa. Vão buscar indivíduos que não têm defesa nenhuma. “Tens meia página ou dez minutos de televisão”. Eles vão para o terreno e fazem aquelas perguntas, aquelas figuras tristes. Mas eu, no lugar deles, não faria melhor. É uma violência! “Enchem pneus”, arrastam, repetem… Isso deprecia o Jornalismo e faz perder a confiança nos órgãos de comunicação.

Numa entrevista de 2019, ao Jornal de Leiria, disseste que a primeira machadada na Democracia foi a concentração empresarial.

Fartei-me de ter essa conversa com o Mário Soares! Não me ligou nenhuma. Quando entrei na profissão, havia 12 grupos. Hoje, são poucos, o que é uma limitação, até de mercado de trabalho.

Tens dito que o “império da imagem” contribuiu muito para degradar a palavra escrita.

Desde a década de 1980 – o Vargas Llosa tem textos interessantes sobre isso – há uma guerra contra a palavra escrita, que é a grande trincheira contra os abusos do poder. Começou a subalternizar-se a palavra escrita, a favor da imagem. É um falso problema, porque se complementam. Diz-se: “uma imagem vale mil palavras”. É verdade. Mas o contrário também é. Quantas imagens são precisas para uma só palavra, como saudade? É uma batota lançar a imagem contra a palavra.

A imagem fomenta um certo imediatismo.

A imagem é muito mais aliciante, muito mais sedutora, enquanto a palavra exige um certo esforço. Gosto muito de cinema, mas nunca se me pôs esse problema de serem umas [formas de expressão] contra as outras. As ditaduras, dominam pelo silêncio e pela repressão; as democracias pelo chinfrim e a sedução. É tanto o barulho que acabamos por não fixar nada. O interesse dos poderes não coincide, normalmente, com o interesse dos povos. Também é isso que torna extraordinária a nossa profissão. Temos de lidar com a realidade. O jornalista pode almoçar com o presidente da República e depois ir para um bairro de lata onde morrem crianças. É muito enriquecedor. Mas insisto: se uma sociedade quer ter informação séria, credível e livre tem de investir. O único caminho é investir na valorização dos jornalistas. Os cursos de Jornalismo são um passo. Mas que tipo de programas têm? São para formatar jornalistas ou para criar indivíduos interventivos, inteligentes, críticos?

Muitos jovens inscrevem-se nos cursos seduzidos pelas televisões, pela possibilidade de serem figuras, de aparecerem…

E não há mercado.

As empresas têm um mercado vasto, barato e disponível.

Não é preciso ler nem escrever para absorver a programação das televisões. É muito complexo, mas temos de resistir. Eu acredito que os jornais em papel vão continuar, talvez com menos tiragem, porque hoje ninguém compra um jornal para saber uma notícia. Somos bombardeados com notícias e a certa altura, ficamos perdidos. Um jornal terá a função de perspetivar. Deve dirigir-se nesse sentido. Ser muito exigente, ter pessoas muito bem preparadas. Em tempos, fui a uma conferência em que apareceu gente mais nova com a ideia de que antigamente os jornalistas eram analfabetos. Quando chegou a minha vez de falar, disse que trabalhei com “analfabetos”: José Saramago, José Cardoso Pires, Sttau-Monteiro, Maria Judite de Carvalho, Urbano Tavares Rodrigues, Herberto Hélder. Antigamente, os jornais viviam muito da notícia, que estes vultos da cultura não tinham muito jeito para sacar. Havia indivíduos com uma capacidade espantosa para isso; alguns eram geniais. Muitos deles, escreviam muito mal. Mas a função deles não era essa. Chegavam à redação e outros jornalistas escreviam.

Para nós, a escola era a redação. Os mais jovens eram acompanhados pelos redatores seniores.

Tive uma experiência muito enriquecedora. Como tenho muita paciência e gosto, várias vezes orientei estágios. Ficava surpreendido com os jovens talentosos que apareciam. O problema dos portugueses não é falta de talento; sempre o tivemos. É de organização. Hoje, é difícil um jovem afirmar-se.

Literatura e Jornalismo são parceiros ou cada um deve estar no seu território?

Sei que é um bocado polémica, mas compartilho a opinião do Batista-Bastos, para quem o Jornalismo é uma disciplina da Literatura. O pilar é o mesmo: a palavra. Na Literatura, é a poesia e depois a crónica, não o romance. Ora crónica é Jornalismo ou Literatura?

Pode ser de ficção ou não ficção.

Sim, mas também há muito romance que não é ficção. A “Balada da Praia dos Cães”, do Cardoso Pires, é uma reportagem. A “Carta do achamento”, do Pêro Vaz de Caminha, que é uma obra-prima da Literatura mundial, é uma reportagem genial sobre a chegada dos portugueses ao Brasil. Todas as crónicas do Fernão Lopes, o Fernão Mendes Pinto… Admiro-me como o cinema não pega na “História Trágico-marítima”. Portugal é dos poucos países que tem um acervo de narrativas de viagens, porque os reis tiveram a lucidez de pôr em cada nau que saía do Tejo um cronista. Chamava-se “assentador de factos” e relatava o que se passava. No Jornalismo, tirando a parte informativa, da notícia, que é específica, destaca-se a crónica. O que determina a forma como escrevemos é o conteúdo. Estou-me nas tintas se escrevo para um livro ou para um jornal. Há uma escrita de primeira para os livros e de segunda para os jornais? Não. Para mim, não há diferença nenhuma. Os jornais sempre foram habitados por grandes escritores – o maior foi o Raúl Brandão. Não ligo nenhuma ao desporto, mas lia religiosamente as crónicas “Hoje corro eu”, do Carlos Pinhão [em A Bola]. Aprendia imenso! Eram deliciosas!

É um autor prolífico e diversificado. Como prefere caracterizar-se? Não é historiador…

Prolífico, nem por isso. Caracterizo-me como preguiçoso.

Como caracterizas a tua intervenção na escrita?

Nunca pensei nisso. Fui jornalista, sou escritor. Sei lá! Não me preocupo muito com isso. Nós não somos sozinhos; somos apenas um elo de uma grande corrente – a dos jornais e da Literatura. A Literatura portuguesa é de grande projeção a nível universal. O Fernando Pessoa afirmava que o primeiro afloramento civilizacional que projetou Portugal além-fronteiras foi a poesia dos cancioneiros e as novelas de cavalaria. Não foram feitos comerciais, militares ou religiosos; foram feitos culturais.

Consegues identificar hoje nos jornais um autor de crónicas que mereça destaque?

O Gonçalo M. Tavares, que é talvez o melhor escritor da geração mais recente. Mas os jornais abandonaram a crónica em favor do comentário. A Maria Judite de Carvalho era uma cronista fabulosa!

No editorial da última edição da revista Electra, José Manuel dos Santos lembra a importância do livro “A cidade e as serras”, do Eça.

Aí está um bom cronista, o José Manuel dos Santos. E o Vasco Pulido Valente, que era um tipo muito inteligente.

Dás-me pretexto para falar de outra questão: não é o Jornalismo da área da cultura que está a ser secundarizado?

Aí está um grave problema! A seguir ao 25 de Abril, começou a falar-se da ideia de que os suplementos literários dos jornais – que eram muito importantes – tinha um problema: colocavam a cultura em guetos, pelo que havia que espalhar a cultura pelo jornal todo. Eu dizia: tanto espalham que vai pela borda fora. A certa altura, os jornais passaram a interessar-se pelo que trazia publicidade, que a cultura, por ser um setor pobre, não dava. Começaram a depreciar a cultura e acabaram com os suplementos literários. Surgiu também uma certa arrogância e desprezo pela gente da cultura, pelos críticos, que eram maltratados. O ter a sobrepor-se ao ser… A gente da cultura deveria ter reagido. Mas há “capelinhas”. É um pouco a situação em que se está. Há o Jornal de Letras… Mas o jornal português que dá mais notícias de cultura é o Correio da Manhã.

Há razões para termos esperança no futuro do Jornalismo ou vai ser dissolvido na ideia de é tudo comunicação?

Tenho esperança de que seja dado um salto qualitativo. Só que as pessoas que atualmente têm responsabilidades no mundo do Jornalismo não estão para aí viradas, querem é fazer coisas popularuchas. Não é só no Jornalismo; é na Literatura. Hoje, um editor está-se nas tintas para o original que lhe entregam. Apenas quer saber duas coisas: se o autor é uma vedeta da televisão ou se o tema é excitante. Esta fase há de ser ultrapassada. Se os jornais apostarem na qualidade, há público para eles. Uma Imprensa de nicho pode ser o caminho.