“Precisamos de um jornalismo que combata a amnésia coletiva”

Os jornalistas distinguidos na 5ª edição do Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva. Créditos: INCM

Na cerimónia de entrega do Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva (5ª edição), que decorreu a 13 de novembro no Clube de Jornalistas, distinguindo a reportagem “Mitra, o ‘depósito dos miseráveis”, publicado no Expresso, frisou-se a importância do jornalismo de investigação e foi anunciada a publicação, no próximo ano, de um ensaio: “O essencial sobre Vicente Jorge Silva”.

“O jornalismo histórico é uma forma de resistência. Para garantir que não há esponja que apague o horror”, disse Joana Pereira Bastos, ao agradecer a distinção no Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva, com a reportagem, “Mitra, o ‘depósito’ dos miseráveis”, de Raquel Moleiro, Joana Pereira Bastos, Tiago Miranda e Rúben Tiago Pereira, e publicada em agosto de 2024 na “Revista E”, do jornal Expresso.

“Mais do que nunca, precisamos de um jornalismo que combata a amnésia coletiva. Porque não falta hoje quem queira branquear o passado. Quem use os nossos microfones, as nossas câmaras de televisão, o nosso espaço mediático para invocar a ditadura como modelo, para fazer do terror a virtude, clamando, despudoradamente, não por um, mas por ‘três Salazares’. Não seremos os mensageiros dessa mensagem”, garantiu.

A investigação distinguida na 5ª edição deste Prémio, atribuído pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM), em parceria com o Clube de Jornalistas, revela como se vivia no Albergue de Mendicidade de Lisboa, mais conhecido por Mitra, onde o regime do Estado Novo encarcerou a partir de 1933 quem queria afastar das ruas – pedintes, vadios, aleijados, loucos e prostitutas.

Entre adultos e crianças, foram atiradas para a antiga fábrica de cortiça, em Lisboa, mais de 20 mil pessoas, algumas durante décadas. Uma delas, Catarina Maria, ainda lá permanece, 70 anos depois de entrar, quando foi submetida ao tratamento a todos dispensado: cabelo rapado, farda e número ao pescoço.

A reportagem “reconstitui o universo de uma época e a forma como o Estado Novo tratava os mais desfavorecidos”, sustentou o júri, justificando a atribuição do galardão, acrescentando que este é “um trabalho que, conjugando rigor, sensibilidade e precisão narrativa, nos reconcilia com o melhor jornalismo: aquele que devolve clareza à memória coletiva. Neste caso, tocando mesmo a emoção”.

Na cerimónia, Nicolau Santos, presidente do júri – composto também pelos jornalistas David Pontes (Público), João Vieira Pereira (Expresso), Luísa Meireles (Agência Lusa) e Rui Cardoso, como representante do Clube dos Jornalistas –, frisou o facto deste trabalho contar as histórias de pessoas que “nunca saíram da Mitra, não tiveram outra vida”, o que só foi possível graças ao facto de os autores associarem testemunhos dos envolvidos a uma exaustiva pesquisa documental em arquivos.

Lembrou ainda que Vicente Jorge Silva “foi e continua a ser um exemplo para o jornalismo português. Nunca transigiu nas suas orientações, na defesa da ética do Jornalismo, das grandes investigações, das grandes reportagens”.

Nicolau Santos (de pé), presidente do júri do Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva, Maria Flor Pedroso, presidente do Clube de Jornalistas, e Duarte Azinheira, administrador executivo da Imprensa Nacional Casa da Moeda. Créditos: INCM

À edição deste ano foram apresentadas 43 candidaturas – cuja elevada qualidade tornou mais complexa a decisão do júri –, da autoria de 63 jornalistas de 23 órgãos de Imprensa.

Foram atribuídas duas Menções Honrosas: a “O Camaleão”, de Cristina Margato e José Pedro Castanheira, publicado no Expresso em abril de 2024, e a “Anatomia de uma detenção pela PSP”, de Joana Gorjão Henriques, Joana Bourgard e José Carvalheiro, que saiu no Público em novembro de 2024.

O primeiro trabalho revela a evolução de Lima de Carvalho, de funcionário da Censura durante o fascismo, faceta desconhecida da sua vida, a patrono das artes, em democracia. “Profusamente documentada”, a reportagem destaca-se pela “solidez da pesquisa”, como sublinhou Nicolau Santos.

A segunda reportagem – que também conquistou este ano o Prémio Gazeta na categoria de Multimédia –, distingue-se, de acordo com o comunicado do júri, “pelo apuro com que domina as novas técnicas jornalísticas, ferramentas que permitem levar mais longe a reconstituição minuciosa dos acontecimentos”.

José Pedro Castanheira recebeu uma Menção Honrosa pelo trabalho “O Camaleão”, assinado em parceria com Cristina Margato e publicado no Expresso. Créditos: INCM

Todos os trabalhos premiados, como fez questão de salientar José Pedro Castanheira, contam de alguma forma com a “impressão digital de Vicente Jorge Silva” – durante anos ligado ao Expresso e fundador do Público. O jornalista, que falou em seu nome e de Cristina Margato, ausente por razões pessoais, chamou a atenção para uma característica comum às reportagens: serem produzidas por equipas de jornalistas. “Não trabalharmos sozinhos, ter alguém ao nosso lado, dá sempre valor acrescentado”.

Coincidindo com Joana Pereira Bastos, que frisou como “vivemos hoje numa voragem de ‘diretos’, ‘últimas horas’ e ‘notificações’”, Castanheira falou da “necessidade que o melhor jornalismo tem de poder respirar e, para isso, precisa de tempo suficiente para ser produzido”. Para quem participou uma investigação que se prolongou por mais de um ano, “pressa e urgência são os piores inimigos do melhor jornalismo”.

A presidente do Clube de jornalistas, Maria Flor Pedroso, destacou a importância da parceria com a INCM na atribuição deste prémio, que Duarte Azinheira, administrador executivo da INCM, enquadrou no “papel especial” que desenvolve “na promoção da língua e da cultura portuguesas”.

Duarte Azinheira admitiu a publicação em livro de todos os trabalhos premiados nas cinco edições. “Fica desde já lançado o desafio”, disse. Por outro lado, assumiu o compromisso de apresentar na próxima edição um ensaio intitulado “O essencial sobre Vicente Jorge Silva”. O Clube de Jornalistas participará na escolha do autor da obra, que será de disponibilização gratuita, em versão digital.

São iniciativas que concretizam a missão que a INCM assumiu, quando decidiu criar este Prémio. “A promoção do jornalismo de qualidade é absolutamente fundamental. É uma questão crítica de cidadania, mais ainda nos tempos que vivemos, em Portugal, na Europa, no mundo. A imprensa livre é o garante de uma democracia de qualidade”, acrescentou Duarte Azinheira.

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O Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva visa distinguir trabalhos que reforcem os diferentes estilos da imprensa escrita e que contribuam para uma sociedade mais informada, atribuindo ao vencedor uma bolsa de investigação jornalística no valor de 5000 euros. Para o Conselho de Administração da INCM, “é inequívoco o contributo cultural e social que o jornalismo presta à sociedade”, algo que se pretende valorizar com este prémio, que “permite também homenagear uma figura incontornável do jornalismo em Portugal e reconhecer o legado que nos deixou a todos como cidadãos”.

O artigo “Estados Unidos da América, crónica de uma (des)união”, assinado por Isabel Lucas no jornal Público, foi o vencedor da primeira edição deste prémio, em 2021. No ano seguinte, venceu a reportagem de investigação “Por ti, Portugal, eu juro!”, da autoria de Sofia da Palma Rodrigues, Diogo Cardoso e Luciana Maruta, divulgada na Divergente. Na terceira edição, a distinção recaiu sobre o trabalho de investigação “O braço-armado do Chega”, de Miguel Carvalho, publicado na revista Visão. A vitória na quarta edição coube a “Morte no rio do ouro”, reportagem de Christiana Martins no Expresso.