“Recebo este prémio naquele que considero o momento mais trágico do jornalismo português em democracia”, disse Miguel Carvalho na cerimónia de entrega do Prémio Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva, que decorreu no Clube de Jornalistas a 31 de maio.
A investigação “O braço-armado do Chega”, publicada na revista Visão, foi a escolha unânime do júri da 3ª edição deste Prémio promovido pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em parceria com o Clube de Jornalistas, tal como anunciado em abril.
Foram também entregues na passada sexta-feira duas menções honrosas, à reportagem Quando a velhice é um quarto escuro, de Ana Tulha e Pedro Alexandre Correia, publicada na Notícias Magazine, e ao trabalho de investigação Pegada Digital, de Inês Rocha, da Rádio Renascença (online).
Durante a cerimónia de entrega dos galardões, a INCM anunciou que irá editar os trabalhos vencedores das primeiras três edições do Prémio Vicente Jorge Silva, que visa homenagear esta figura de destaque no jornalismo português das últimas décadas, distinguindo trabalhos que reforcem os diferentes estilos da imprensa escrita, seja através da investigação, da reportagem ou da análise, e que contribuam para uma sociedade mais informada.
Miguel Carvalho recebeu um troféu e uma bolsa de investigação jornalística no valor de 5000 euros. No seu discurso de agradecimento, lembrou que a investigação premiada foi publicada na revista Visão, cuja redação integrou durante 24 anos, no Porto, e da qual se despediu no ano passado. “Foi de longe o melhor sítio onde trabalhei. À redação, que vive momentos muito difíceis, mando um apertado abraço. A investigação que candidatei a este prémio, e à qual dediquei nove meses de trabalho, deve também muito ao que Visão ainda representa.”
Num período de grandes mudanças, quando recebeu o telefonema de Nicolau Santos a anunciar que era ele o vencedor, não conteve as lágrimas.
Naquele momento, como explicou na cerimónia no Clube de Jornalistas, várias emoções se cruzaram. “Por um lado, tinha saído da revista há poucos meses e o simples facto de receber este prémio trouxe-me de volta as boas memórias do que ali vivi. Ao mesmo tempo, percebi que já tinha feito o luto de um tempo que não volta; Por outro, este era também um reconhecimento dos meus pares e isso é algo que tem, para mim, uma importância e um orgulho desmedido; Por fim, o facto de este prémio ter o nome do Vicente Jorge Silva, com o qual nunca tive o privilégio de trabalhar, mas que entrevistei e contactei no âmbito de algumas reportagens. Dele guardo momentos, madrugada fora, em que a sua capacidade de desassossegar, inquietar e provocar foi absolutamente inspiradora. Uma postura e uma mentalidade que muitos dos que trabalharam com ele reconhecem e que continuam a ter como referência para as lutas pela integridade e o valor deste ofício nestes tempos do avesso.”
O jornalista, que venceu o Prémio Gazeta no ano passado com a mesma investigação (ex aequo com Pedro Caldeira Rodrigues, com a reportagem “Chove em Kiev”, pela Lusa), fez também “um agradecimento profundo” à família, na qual incluiu os amigos mais próximos: “Têm aguentado o inimaginável com os meus trabalhos e a minha forma obsessiva de viver este ofício.”
A parte final do seu discurso centrou-se nas dificuldades que a imprensa portuguesa vive atualmente. “Recebo este prémio naquele que considero o momento mais trágico do jornalismo português em democracia”, lamentou, frisando que “um jornalismo frágil, no osso, amarfanhado na sua integridade, nas suas ambições e nos seus recursos, continuará a ser território fácil para as trincheiras da desumanização, do preconceito, das desigualdades e da agressão ao progresso civilizacional”.
“O jornalismo pode e tem de continuar a ser o alicerce de uma sociedade que não dispensa o escrutínio público dos poderes”
MIGUEL CARVALHO
Também “um jornalismo que não se respeita, enxofrado, pantomineiro ou armado em justiceiro só cavará o próprio fosso e só promoverá uma democracia desqualificada e tribal”.
Miguel Carvalho entende que “este é, pois, o tempo do desassossego, da inquietação, que o Vicente tinha de sobra e usava para nos sobressaltar”.
Este é o tempo “de provar quotidianamente, com todas as letras e em todos os lugares, que o jornalismo e a República caminham juntos, na defesa de valores que não se traficam”.
O jornalismo “pode e tem de continuar a ser o alicerce de uma sociedade que não dispensa o escrutínio público dos poderes, mas exige mais do que polícias-sinaleiros nas instituições e na gestão mediática dos acontecimentos”.
Exige também “mais do que um capitalismo de vão de escada, que não conhece o dono nem a poesia que este ofício veste por dentro quando quer mudar o mundo. Ou tentar, pelo menos.”