O jornalista José Pedro Castanheira recebeu o Prémio Mário Mesquita 2025 no passado dia 22 de Abril, no auditório da Sociedade Portuguesa de Autores.
Nascido em 1952 e jornalista profissional desde 1974, trabalhou no diário “A Luta” e no semanário “O Jornal”, onde coordenou um gabinete de grande reportagem e investigação entre 1979 e 1989, ano em que passa para a redação do Expresso, onde trabalhou até 2017 como repórter principal. Distinguido ao longo da sua carreira com os mais prestigiados galardões de jornalismo atribuídos em Portugal – incluindo o Prémio Gazeta, em 1983 – vê o seu percurso agora distinguido na 4ª edição deste prémio criado pela SPA para homenagear Mário Mesquita, que foi director do “Diário de Notícias” e do “Diário de Lisboa” e um muito prestigiado professor de várias gerações de jornalistas.
O Prémio Mário Mesquita é atribuído anualmente a um jornalista que, segundo a SPA, tenha “trabalho já reconhecido” e as “qualidades que a distinção consagra”. Na 1ª edição foi premiada Cândida Pinto; na 2ª edição, Pedro Coelho; e na 3ª, Sérgio Furtado.
Discurso de José Pedro Castanheira
Permitam-me que comece por falar do Mário Mesquita, patrono do prémio. Conheci-o há mais de 50 anos, provavelmente em 1972. Tínhamos quase a mesma idade – ele com mais dois anos que eu, o que, quando se tem 19 ou 20, até faz alguma diferença. Éramos ambos estudantes universitários, ele em Direito, eu em Economia, cursos a que muito ficámos a dever, mas que nenhum de nós concluiu. Conhecemo-nos na JUC, a Juventude Universitária Católica, de que eu era militante, enquanto ele era um simples visitante. Mas enquanto o Mário já era jornalista, no “República”, eu nem sequer tinha pensado na hipótese de o vir a ser. Leitor assíduo do “República”, que era o principal jornal da oposição, lia habitualmente as crónicas, as notas e as entrevistas do Mário. Sujeitas, como é bom de ver, à Censura do lápis azul, eram textos sempre inteligentes, cultos, hábeis, finos, com uma dose de humor q.b., bem escritos, corajosos, acutilantes, audazes, independentes, de quem pensava pela própria cabeça e assumia as correspondentes consequências e responsabilidades. Ele foi assim toda a vida, no jornalismo, na academia, na intervenção cívica e política, nunca escondendo as suas opções.
LEITOR, CAMARADA, AMIGO, ADMIRADOR E ALUNO
Nunca trabalhámos juntos, mas cruzámo-nos frequentemente. Propôs-me colaboração por duas vezes – e por duas vezes tive de recusar. A primeira, em finais de 1989, foi para integrar a redação do vespertino “Diário de Lisboa” que ele iria dirigir – mas eu tinha acabado de trocar “O Jornal” pelo “Expresso” e já era, decididamente, um jornalista com uma cultura de semanário, muito mais do que de um diário.
A segunda foi muito mais tarde, estava ele na FLAD, e, sabedor da minha paixão pelas suas ilhas dos Açores, propôs-me que pegasse nos volumosos Anais da Família Dabney no Faial e os transformasse num livro capaz de cativar o público português. Inteiramente monopolizado, à época, pela biografia do Presidente Jorge Sampaio, fui obrigado a recusar, e com pena o fiz.
Do Mário Mesquita fui, pois, leitor, camarada de profissão, amigo e sincero admirador. Ah!: também fui seu aluno, num curso de pós-graduação em jornalismo promovido em 2000-2001 pelo ISCTE e pela Escola Superior de Comunicação Social. Ao preparar estas linhas, senti uma necessidade física de compulsar alguns dos seus livros. Encontrei nas minhas desarrumadas estantes nove livros seus – o Mário foi realmente o autor que mais e melhor escreveu sobre os media em Portugal.
Pessoalmente, devo-lhe a honra de ter sido por ele identificado, num longo ensaio de 1987, como um dos pioneiros em Portugal no que ele designava de jornalismo investigativo. Essa foi uma primeira medalha com que o Mário me brindou. Uma outra, por interpostas pessoas ou instituições, é este prémio. Muito diferente de anteriores distinções que me foram conferidas, posto que é um prémio de carreira – e já lá vão 51 anos.
DO DIÁRIO “A LUTA” AO SEMANÁRIO “O JORNAL”
Voltando agora ao princípio, se antes do 25 de Abril eu jamais sonhara em ser jornalista, a revolução dos cravos deu cabo de todos os meus planos (e ainda bem!) e abriu-me horizontes jamais fantasiados. De tal sorte que, em agosto, quatro meses depois, eu já era jornalista num mensário, “Povo Rural” de seu nome, guiado por um grande jornalista, o João Gomes, que fazia parte da chefia de redação do “República” e que fora o primeiro português a licenciar-se em Jornalismo, não em Portugal (visto que o Estado Novo impedia o ensino superior de jornalismo), mas em Lille. Se sou jornalista, devo-o inteiramente ao já falecido João Gomes. Foi ele quem me desafiou e encorajou, a ponto de, no ano seguinte, 1975, o do PREC, me levar para a redação do vespertino “A Luta”, onde fiz a minha verdadeira aprendizagem deste ofício apaixonante.
Seguiu-se, em 1979, “O Jornal”, uma espécie de sociedade de redatores inspirada no modelo do francês “Le Monde”. Dirigido pelo José Carlos Vasconcelos, tinha uma plêiade de excelentes repórteres, e cotava-se, a meu ver, como o melhor jornal português daquela época. Foi nele que me iniciei na suprema disciplina do jornalismo, que é a reportagem, e no jornalismo de investigação, ao tempo praticamente inexistente. Como muitos se lembrarão, “O Jornal” era um semanário independente de esquerda. E continuo a não entender, como já o disse em 2017, no 4º Congresso dos Jornalistas, por que raio é que não há no mercado nacional um órgão de informação assumidamente de esquerda.
QUASE TRINTA ANOS NO “EXPRESSO”
Em 1989 mudei-me para o “Expresso” e por lá fiquei quase 30 anos, até à reforma. Foram os meus anos de ouro em termos profissionais. Foram também os anos de ouro do grupo liderado por Francisco Pinto Balsemão, o melhor “patrão” de imprensa que tive e que conheci, e que só aqui não está, como me disse por SMS, por “não estar ainda em forma”. E se o menciono e cito é porque, através dele, quero agradecer a todos quantos me permitiram e ajudaram a exercer a mais bela profissão do mundo. Desde as telefonistas e secretárias de redação, capazes de me desencantar um precioso número de telefone nos confins de África, aos administradores que não hesitaram em investir, e forte, em reportagens dispendiosas, mas de resultados inevitavelmente incertos. Passando pelos vários diretores e editores, alguns deles aqui presentes (como o Henrique Monteiro, o João Garcia e o Miguel Cadete, mas também a Cândida Pinto e o Nicolau Santos, que não puderam marcar o ponto), com quem tratei de programar, planear, organizar, discutir, corrigir, numa perspetiva de aperfeiçoar o produto final e melhor servir os leitores.
A REPORTAGEM TAMBÉM É UM TRABALHO DE EQUIPA
Os melhores trabalhos que assinei foram quase sempre o resultado de um trabalho, de um esforço, de uma iniciativa ou de um exercício de imaginação não direi coletiva, mas conjunta, de equipa. Com outros camaradas da redação ou com correspondentes no estrangeiro; com os fotojornalistas; com os arquivistas e documentalistas; com os paginadores, infográficos, revisores e copydesks. Mesmo alguns dos meus livros, provavelmente dos melhores, foram o resultado de um trabalho conjunto. Alguns, escritos a quatro mãos – com o Adelino Gomes um deles, outro com o Valdemar Cruz. Houve mesmo um que foi escrito a seis mãos, com a Natal Vaz e o António Caeiro.
Pois é, o produto final da melhor informação passa normalmente por muita gente e de várias profissões. É certo que o leitor depara quase sempre com uma só assinatura, mas por detrás dela há muito trabalho e muitos trabalhadores (e não apenas colaboradores, como agora se diz…) – escondidos, esquecidos, tantas vezes ignorados. Neste sentido, gostaria que este prémio fosse, também, um prémio para todos, e foram muitos, os que me ajudaram nesta profissão. Uma profissão que amei perdidamente e continuo a amar – e a Lúcia, e os nossos dois filhos, Pedro e Afonso, bem o sabem, e bem o sentiram na pele.
É realmente uma profissão apaixonante. Não me canso de o dizer e gritar aos quatro ventos. Sobretudo aos estudantes de comunicação social, quando sou convidado a ir dar uma ou outra aula, em que, no essencial, lhes conto as minhas aventuras de jornalista, que tem tido imensa sorte. Porque a estrelinha da sorte também é indispensável, e ela tem-me bafejado constantemente. Fui, ou sou, um jornalista feliz. Com muita sorte.
QUE FALTA NOS FAZ A BONDADE!
Falemos agora de coisas menos felizes. Não é novidade nenhuma: os tempos não estão nada fáceis para o mundo em que vivemos – e também para o jornalismo.
Os ventos que sopram do outro lado do Atlântico são simplesmente alarmantes e podem infetar-nos a todos, como aconteceu com o Covid. A banalidade do mal voltou a estar na ordem do dia. O futuro do mundo está sombrio – e mais sombrio ficou com a morte do Papa Francisco, em que todos (ou quase todos), crentes e não crentes, víamos um farol de esperança, de coragem, de crença em valores essenciais como o despojamento, a conversão, o diálogo, a tolerância, a inclusão, a paz, a bondade. E que falta nos faz a bondade! E de quem não tenha medo!
No plano que mais nos interessa, o da informação e do jornalismo, por incrível que seja, por inacreditável que pareça, nos Estados Unidos é a censura que está na ordem do dia. E sabe-se como as modas made in USA tendem a alastrar por quase toda a parte, aplicadas acriticamente e sempre diligentemente por todos os aprendizes de feiticeiro na velha Europa e em muitos outros países.
OS MEDIA DOS EUA SABERÃO DEFENDER A LIBERDADE
À censura imposta gradualmente por proprietários, tanto dos media tradicionais como das modernas redes sociais, acresce, desde o início do ano, uma censura do próprio Estado, decretada arbitrariamente, de forma discricionária, pelo próprio Presidente Trump, que tem todas as características com que se molda um ditador. Estou a pesar a palavra. Fosse ele o Presidente de uma outra nação que não os EUA e já ninguém hesitaria – nas chancelarias, nos media, nas universidades, nas esferas da política – em classificá-lo de ditador.
Mas como sempre acontece em todas as sociedades marcadas pelo autoritarismo, mesmo pelo totalitarismo mais cego e feroz como o de Hitler ou de Estaline, haverá sempre alguém que resiste. E os primeiros sinais de resistência estão aí: na rua, claro, mas também nas universidades, nos sindicatos, no empresariado mais esclarecido, nos tribunais, nas igrejas, nos grandes partidos, mesmo no Partido Republicano. Também nos media, pelo menos em alguns. Estou certo que os media norte-americanos, que tantas lições nos deram outrora, que tanto admirámos e com quem tanto aprendemos, saberão estar mais uma vez à altura dos seus créditos. Confio em que saberão ser os guardiões desse último bastião da democracia que é a liberdade de informação.
A NECESSIDADE DA REGULAÇÃO DOS MEDIA
Os ventos que correm chegam a ser arrepiantes. Vivemos tempos em que campeia a desinformação, a instrumentalização, a difamação, as campanhas, a mentira, com a violação das regras mais básicas do jornalismo.
Quando há vozes insistentes, e com cada vez mais influência e poder, a vociferar contra a regulação do que quer que seja, não tenho dúvidas que, pelo contrário, a regulação da comunicação social é cada vez mais necessária. Começando pela autorregulação.
Uma autorregulação que passa por normas e instrumentos como o código deontológico, os livros de estilo ou códigos de conduta ao nível empresarial, os conselhos de redação, os provedores (dos leitores, dos ouvintes ou dos espetadores) e pelas organizações profissionais dos jornalistas. Uma autorregulação levada a sério, atenta, vigilante, competente, criteriosa, exigente, com uma autoridade suficiente nos planos ético e profissional que a capacite, se necessário for, para aplicar sanções.
Mas num universo em que a informação, com aspas ou sem elas, é cada vez mais produzida num plano global, à margem dos tradicionais órgãos de comunicação social e ultrapassa a profissão, a autorregulação é largamente insuficiente. O que coloca a questão crucial da regulação dos media: imprensa, rádio, televisão e especialmente das redes sociais. Uma regulação que, para ser eficaz, terá de ser feita a uma escala transnacional. Que obrigue à transparência em matéria da propriedade dos media, que introduza limites na sua concentração, que promova valores essenciais como a independência, a diversidade e o pluralismo.
Serei porventura irrealista, talvez ingénuo, mas continuo a acreditar firmemente no futuro do jornalismo – da sua qualidade, da sua independência, da sua necessidade enquanto serviço permanente e indispensável à opinião pública, da sua sobrevivência enquanto profissão. A mensagem nunca dispensará um mensageiro qualificado, independente, reconhecido e respeitado.
A VERDADE NO CÓDIGO DEONTOLÓGICO…
A minha última palavra é, evidentemente, para a Sociedade Portuguesa da Autores. E de agradecimento, na pessoa do seu presidente. Na carta com a qual me comunicou a decisão da SPA de me atribuir o Prémio Mário Mesquita de Jornalismo, o José Jorge Letria justificou a atribuição deste prémio pelo trabalho desenvolvido “sempre ao serviço da divulgação da verdade e dos factos mais marcantes da nossa vida coletiva”.
Não sei se existe essa verdade. E se ela deve ser escrita com caixa alta, ou se nos devemos contentar com a verdade mais comezinha, com letra pequena ou em caixa baixa. Não vou entrar, porém, nessa discussão, que é mais de carater filosófico, ontológico e até teológico e metafísico. Como sabem, não é esse o meu estilo.
Há muitos anos, quando o Sindicato dos Jornalistas promoveu mais uma indispensável atualização e adaptação do Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, levantei uma dúvida, qual era a de saber se a tal verdade deveria, ou não, ser um valor a contemplar no código. Era mais uma interrogação que eu colocava, uma preocupação, uma inquietação. A questão deu brado. No bom sentido, entendamo-nos, porque a discussão que se seguiu foi séria e profunda. Mas inconclusiva, como era inevitável. Eu próprio, percebendo que a discussão corria o risco de ser interminável, e de poder ser um fator de alguma perturbação, deixei cair a sugestão. E o código deontológico, mesmo na versão atual, de 2017, ao lado de valores como o rigor, a honestidade, a seriedade, a independência ou a liberdade, não acolhe o vocábulo verdade, nem como substantivo, nem como adjetivo. Não se veja nisto uma censura ao código, que ajudei a elaborar, que votei no referendo e que trago todos os dias comigo na carteira.
… E O CÓDIGO PESSOAL DE CONDUTA
Mas para além do código deontológico, cada um de nós tem o seu código pessoal de conduta. E nesse pequenino código, que foi nascendo na família, na escola, no estudo, no associativismo, na militância cívica e política, no dia-a-dia da profissão, que se foi construindo, consolidando, fundamentando, aperfeiçoando, esse meu código, que não está impresso, contempla o valor da verdade.
Uma verdade factual a que, no plano profissional, sei que tenho o dever de respeitar e procurar em cada notícia que escreva, em cada reportagem, pequena ou grande, que faça, em cada história que investigue, em cada comentário que ensaie. Com insistência, com paciência, também com método, sem transigências nem preconceitos. Uma verdade porventura inalcançável, ou se calhar até inexistente em termos absolutos, mas que, paradoxalmente, sinto que deve nortear o meu esforço e trabalho, a minha procura e investigação.
Mas deixemo-nos de filosofias e divagações. Muito obrigado, meu caro José Jorge Letria. Muito obrigado, minha querida Ana Mesquita e meu querido João Garcia, pelas palavras muito simpáticas e elogiosas que antes me dirigiram. E muito obrigado a todos os presentes, em particular aos meus familiares. Acreditem: se alguma vez eu escrever um livro de memórias, provavelmente começará ou terminará com o dia de hoje e com este prémio.