O provedor do leitor do Público faz um balanço do mandato de um ano. Consciente de que cabe aos leitores julgarem o seu desempenho, não deixa de sublinhar que a criação do cargo de editor de Opinião, sem paralelo na Europa, partiu de sugestão sua. A conversa, em que a palavra honestidade é repetida várias vezes, como princípio fundamental da prática jornalística, estende-se aos desafios dos media e à Carta de Direitos Humanos na Era Digital, que tira José Manuel Barata-Feyo do sério. Passando pelo seu tempo de jornalista da RTP, ainda sob tutela governamental.
Paulo Martins Texto
Elodie Fiedler Fotos
É, neste momento, o único provedor da Imprensa portuguesa, modelo que o Público recuperou. Apresenta-se como “interlocutor permanente, independente e responsável pela defesa dos direitos do leitor”. Conseguiu cumprir o objetivo, neste ano de mandato?
Pelo menos, tentei. E se não consegui, a culpa não é certamente do Público, cuja colaboração tem sido exemplar, a começar pelo diretor. Se pelo meu lado consegui fazê-lo ou não, caberá aos leitores avaliar e julgar.
Ao adotar esse enunciado, parece que toma partido – está em funções para defesa dos direitos do leitor. Mas o leitor pode interpretar a função de outra maneira: “Este senhor é funcionário do jornal”.
Isso aconteceu uma vez com um leitor, que sem por diretamente em causa a figura do provedor do leitor, referiu, em abstrato, que temos empresas que auditam outras e cujos resultados acabam por ser determinados não pela realidade do que constataram, mas pelo facto de serem pagas pela empresa que encomendou o trabalho. Posso garantir que não é certamente por aquilo que o Público paga a um jornalista para ser provedor do leitor que ele se torna um instrumento da hierarquia do jornal. Não faz sentido. O provedor do leitor é provedor do leitor, quer seja pago pelo jornal, quer não seja.
A disposição estatutária de limite de mandato contribui para uma imagem de independência.
Sim, sim. Posso garantir que nunca houve da parte do Público a mais pequena interferência no meu trabalho. Algumas vezes, fui crítico do jornal e dos jornalistas, outras não, porque é invulgar que a verdade esteja sempre de um só lado. Mas a regra é que os leitores têm normalmente razão nos seus protestos. O provedor faz o que lhe compete: sublinhar que o leitor tem razão e que o jornal violou o Livro de Estilo ou, mais raramente, o Código Deontológico ou o Estatuto Editorial. Isso acontece naturalissimamente; nunca houve qualquer problema.
Numa crónica de agosto, colocou a questão-chave sobre se é provedor do leitor ou do jornal. Sente que conseguiu cumprir esse compromisso de respeitar – ou de chamar a atenção para eventuais infrações – o Código Deontológico, o Estatuto do Jornalista, o Estatuto Editorial e o Livro de Estilo do Público?
Se não consegui, só eu sou culpado. Atuei – e continuo a atuar, porque sou provedor no momento em que falamos – com total independência e liberdade. Mas isso é uma coisa. Outra é aquilo que o provedor consegue ou não fazer. Estou relativamente contente, na medida em que pelos menos duas sugestões feitas pelo provedor foram acolhidas pelo jornal. A primeira tinha que ver com a parte gráfica: leitores daltónicos tinham problemas para avaliar a qualidade das críticas a filmes, porque as “estrelinhas” apareciam com cores. A direção gráfica resolveu o problema. Hoje, são usadas “estrelinhas” cheias, meio cheias ou vazias.
Qual foi a outra sugestão?
Foi a instituição de um editor de Opinião, o jornalista Álvaro Vieira. Todos os textos passam por ele. Tem poderes para lhes mexer, não diretamente, mas chamando a atenção dos autores. Gostamos muito de nos comparar com os europeus. Ora, tanto quanto sei, o Público é o único jornal europeu com um editor de Opinião. Isso é muito importante. Há uns meses, um estudo europeu revelou que uma percentagem considerável de jovens confunde factos com opinião. Quando o opinador utiliza como argumentos factos errados, os jovens não entendem o texto como de opinião e, por conseguinte, não colocam reservas. Isso cria problemas graves. Como dizia um célebre jornalista norte-americano, não é possível sustentar que o sol nasce a poente. A liberdade de opinar não passa por aí.
Essa questão remete para os limites da liberdade de expressão e a responsabilidade de uma direção editorial. Será legítimo que uma direção editorial decida não publicar determinado texto de um cronista permanente, porque afeta direitos de terceiros, por exemplo?
Incontestavelmente! Um dos problemas que se colocam em Portugal – também, talvez, resultado de uma democracia recente – é a falta de prática nesse domínio e alguns exageros no que respeita à liberdade de expressão, que ocorreram logo a seguir ao 25 de Abril. Isso leva-nos a esquecer algumas coisas básicas: o diretor de um jornal tem todo o direito de impor os seus critérios editoriais sobre quaisquer outros. Do ponto de vista legal, é o responsável. Portanto, quando decide publicar – ou não publicar – o texto de um colaborador, inclusive de um jornalista, faz prevalecer o seu critério editorial. Se assim não fosse, a coisa mais parecida com uma república absolutamente anárquica seria um jornal, onde cada um publicaria o que lhe apetecia, inclusive violando o Estatuto Editorial e o Código Deontológico.
Voltando à sua função de provedor. Que tipo de queixas lhe são apresentadas? A ideia que ficou da atuação dos provedores do leitor em Portugal é que uma grande parte tinha a ver com suspeitas, mais ou menos assumidas pelos leitores, sobre posicionamentos políticos do jornal.
Algumas são desse tipo, não a maioria. Houve uma evolução do conhecimento dos leitores em relação aos mecanismos de feitura de um jornal. É claro que, por vezes, o leitor quer ver no jornal uma espécie de reconforto para as suas opiniões político-partidárias. Mas um jornal independente não tem de reconfortar as opiniões de A, B ou C, porque é de todos os leitores. Algumas vezes sucede que, em relação aos cronistas mais marcadamente à esquerda ou à direita – se é que podemos falar nestes termos – há protestos. Há leitores que protestam contra textos de Rui Tavares ou, por exemplo, de Fátima Bonifácio. Percebemos imediatamente onde se situam em termos politico-ideológicos. Trata-se de leitores que querem muito encontrar num jornal independente o apoio para as suas convicções. O provedor, que não se pronuncia sobre textos de opinião, tem uma função que considero didática: dizer ao leitor que quanto mais rico for o leque de pessoas que contribui para os textos de opinião – não confundir com notícias – mais rico é o jornal, no plano da diversidade. Sei que algumas pessoas discordam deste ponto de vista. O professor Nobre-Correia defende ser completamente absurdo pensar-se que um jornal pode ser independente, porque tem uma linha ideológica. É discutível. Podemos considerar que um jornal se situa numa área politico-ideológica mais um menos evidente, que transparece nos artigos de opinião, na escolha das notícias e na maneira como as trata. Se olharmos para o exemplo da França – que conheço melhor, porque estive lá exilado – diremos que o Figaro é claramente identificado com setores mais conservadores e o Monde com a esquerda. Como poderíamos classificar o Público, usando esse critério? Uma coisa me parece certa: não é um jornal conservador. Situa-se numa área progressista, algumas vezes roçando o que se convencionou chamar extrema-esquerda. É perfeitamente legítimo, porque o próprio Livro de Estilo aponta princípios identificados com uma posição político-partidária que – a análise é exclusivamente minha – situaria do centro-esquerda para a esquerda.
Não é incompatível um jornal ter um posicionamento político e, no plano jornalístico, adotar critérios e formas de funcionamento que permitem manter o distanciamento. Em Espanha, toda a gente sabe: El País é de esquerda e El Mundo de direita, mas este jornal denunciou casos de corrupção envolvendo o PP. O importante é preservar a independência dos jornalistas.
O que marca o posicionamento de um jornal é o editorial, se não assinado. Um editorial assinado é a posição de quem o assina sobre determinada matéria. Podemos nós considerar que o Figaro ou o Monde não são independentes? Diria que são, embora tenham marcadamente uma posição com a qual os respetivos leitores se identificam. É o velho drama daquilo que não existe na Imprensa, a chamada objetividade. A objetividade não existe; o que existe é a isenção e a honestidade. Sobretudo a honestidade com que o jornalista transmite aquilo que vê! Para mim, o Público não é um jornal conservador, embora abra as suas páginas e dê voz a cronistas que se situam na área dos conservadores, alguns até muito conservadores.
Regra geral, os jornalistas acolhem as suas posições, como provedor, quando são criticados?
Até hoje, só tive o caso de dois jornalistas que não aceitaram as posições do provedor, que é independente.
Esse caso é conhecido. O Público, ao proporcionar aos jornalistas em causa, Cláudia Marques Santos e Paulo Pena, espaço para se defenderem só se prestigiou. O caso poderia ter criado um conflito difícil de gerir, mas o jornal abriu-se à discussão. Concorda?
Não discuto se o jornal fez bem ou mal ao proporcionar a esses jornalistas, que não são do quadro do Público, a possibilidade de transmitirem a sua opinião sobre a posição do provedor. Por uma questão de delicadeza, o Público disse-me antes. E achei que deveria fazer o que entendia. Depois, havia dois caminhos: ou o provedor respondia numa página de opinião ou fazia o que optei por fazer: escrever apenas um post scriptum na sua coluna. Sei que a questão foi colocada ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas e que através de uma série de trapalhadas que tenho dificuldade em entender – e não prestigiam em nada o dito conselho – o relatório preliminar chegou o conhecimento dos queixosos, chamemos-lhe assim, que perante isso retiraram a queixa. Nunca se saberá ao certo o que estava nesse relatório preliminar. Mas não sejamos ingénuos: é óbvio que se a posição pelo menos do conselheiro relator fosse no sentido da queixa apresentada pelos jornalistas eles não se teriam oposto a que as conclusões finais fossem tornadas públicas. Enfim, é só a minha interpretação da desistência da queixa. Lamento que o conselho não se pronuncie sobre a matéria, porque me parece exemplar de uma certa arrogância, que todos nós jornalistas temos, que nos leva a determinar que estamos acima das instituições e que em nome da liberdade de Imprensa podemos dizer uma coisa e o seu contrário. Neste caso, o que estava em jogo era se em determinado julgamento os réus, condenados a 8 e 9 anos de prisão, tinham sido bem ou mal condenados. Houve intervenção de um coletivo de juízes, depois da Relação e do Supremo. Quando investigamos um processo judicial, podemos sempre encontrar falhas. Mas, do ponto de vista jornalístico, não aceito – porque não foi isso que aprendi – que se transmita uma posição sem se ouvir a outra parte. Não é, obviamente, entrevistar os juízes…
Na sua opinião, não era suficiente a própria sentença?
A sentença teria de ser “ouvida”. O leitor tinha de saber quais as razões que levaram os tribunais a condenar, com penas pesadas, os dois jovens. Toda a investigação foi feita a apontar no sentido de que o julgamento não tinha sido justo. Ora, em democracia o poder judicial é extremamente importante. Ignorar pura e simplesmente uma parte… Recordo o que sucedeu durante décadas com as comissões parlamentares de inquérito ao “caso Camarate” e com o jornal O Diabo, que nunca quiseram ouvir ou transmitir as posições dos tribunais. Foram sempre escamoteadas, para impor a tese de atentado. Não é aceitável que se ataque um acórdão do tribunal sem transmitir na peça jornalística as razões que o levaram a condenar. Depois, o leitor julgará. Escamotear as posições dos tribunais, num Estado de Direito, parece-me perigoso. E viola, claramente, o artigo 1.º do Código Deontológico. Não tenho a mínima dúvida a esse respeito: é ouvida uma parte, não é ouvida a outra. Isso é muito grave! Se aplicarmos esse princípio, teremos jornais que são panfletos. Não queremos jornalismo feito com parti pris. A justificação dada pelos jornalistas, neste caso concreto, foi que a sentença é pública. Isso quer dizer que os leitores do Público iriam ao Tribunal de Portimão consultar o processo? Ou competia aos jornalistas transmitirem, num parágrafo que fosse, as razões do tribunal?
Como avalia, em geral, o cumprimento das regras deontológicas em Portugal?
Estou muito descrente em relação a isso. Há um relaxar das regras deontológicas, extremamente preocupante. Remete para uma série de considerandos, que têm que ver com a pressão brutal exercida sobre a Imprensa (com maiúscula; não gosto da expressão comunicação social, que é tudo, até as redes sociais). As pressões que existem em nome de fatores de rendibilidade – isto é, as televisões têm de ter audiências, porque vivem da publicidade… Não é o caso do serviço público, agora. Foi uma enorme deceção para mim. Toda a vida me bati pela independência do serviço público e tive desaguisados terríveis na RTP por causa disso. Tínhamos um estatuto governamental.
Hoje já não é exatamente assim…
Hoje, não é assim de todo! Aquele tempo sinistro em que mudava o Governo e a tutela nomeava um novo conselho de administração, que por sua vez nomeava as direções, que nomeavam as chefias… Era uma cadeia insalubre de dependência do serviço público face à tutela. No meu caso, além de terem tentado despedir-me várias vezes, acabaram com o programa, “Grande Reportagem”, dispersaram a redação e fiquei proibido de entrar nas instalações e de trabalhar durante 18 meses. É um claro exemplo de interferência direta do Governo – hoje, sabe-se quem foram os membros do Governo que intervieram. Esse combate foi ganho pelos jornalistas, uma vez que o Conselho de Comunicação Social impôs que a reportagem sobre a guerra civil em Angola, feita com as tropas da UNITA, fosse emitida. Um pouco melhor do que esse estatuto governamental, seria o parlamentar. Mas o ideal é o que temos hoje…
A existência de um Conselho Independente.
Lamento imenso dizê-lo, mas a passagem do estatuto governamental para o atual não se refletiu na RTP. Tal como a independência do financiamento, que era usado pelos governos para condicionar o trabalho na RTP. Tive casos em que uma reportagem não era feita não porque o diretor de informação achasse que não era adequado fazê-la, mas porque a administração, por razões puramente políticas e governamentais, decidia que não havia dinheiro para a fazer. Isso aconteceu durante décadas – na ditadura e em democracia. O presidente do Conselho de Administração da RTP exercia funções com a assinatura da tutela. Não tinha qualquer espécie de independência funcional.
Tem uma visão muito negativa do cumprimento de regras deontológicas. O que considera necessário fazer para melhorar? Novos instrumentos?
Não. Basta respeitar os textos fundadores da liberdade de Imprensa; não temos de inventar mais nada. Chegam. Ou, então, vai mudando a legislação ao sabor do lado de onde sopra o vento. No caso do Público, há o Livro de Estilo, exemplar em qualquer parte do mundo. Está lá tudo! Precisamos é de trabalhar, como já disse, com isenção, com independência e com honestidade. As queixas dos leitores, para concluir a resposta à questão de há pouco, raramente são na área dos considerandos político-ideológicos. Olhe, são sobre os títulos, por exemplo. Porque, por vezes, sobretudo os de primeira página, dizem uma coisa que não está no texto. Os leitores, hoje, já são mais exigentes. Evoluíram muito, designadamente em relação a questões de ordem técnica. Estão muito mais atentos e já têm um melhor e maior conhecimento das obrigações éticas dos jornalistas. E protestam. Os limites dos títulos, forçosamente curtos, fazem com que muitas vezes sejam especulativos e não fundamentados. Quando os leitores se queixam, o provedor pergunta ao jornalista ou ao editor responsável como responde ao leitor. Depois, decide. Não em função daquilo que lhe passa pela cabeça, mas dos textos – Estatuto Editorial, Livro de Estilo, Código Deontológico e Estatuto do Jornalista.
Também tem feito crítica mais alargada aos media. Chegou a escrever sobre a “agência noticiosa” Marques Mendes, sublinhando que um comentador não é uma fonte. Os comentadores estão a substituir-se aos jornalistas?
Acho que os jornalistas fazem todo o possível para que os comentadores os substituam. Como, aliás, fizeram tudo para tornar as redes sociais naquilo que elas são. Recordo-me de um colega que andava histérico nas redações porque tinha descoberto que havia opinião nas redes sociais. E começámos a fazer programas de informação sobre as redes sociais. As redes sociais são uma criatura. São um aborto do jornalismo que fizemos. Não vale a pena tentar encontrar desculpas para isso. Os “polígrafos” também são um aborto, em inúmeros casos. Não consigo entender que critério leva à apreciação por parte do “Polígrafo” de casos de que ninguém ouviu falar. Um anónimo qualquer produz uma barbaridade e o “Polígrafo” vai constatar que é uma barbaridade.
Amplifica a mensagem.
Sim. A barbaridade não teria existido se não fosse o “Polígrafo”. Isto é: o resultado é o oposto daquela que seria, teoricamente, a intenção do “Polígrafo”, que afinal serve para projetar e amplificar as bacoradas – o termo é mesmo esse – que são ditas nas redes sociais.
Tomou posição sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.
Uma infâmia!
Está mesmo convencido de que abre caminho à censura?
Não tenho a mínima dúvida! É uma infâmia porquê? Porque o artigo 6-º, invocando uma terminologia quase copiada da censura instituída pela ditadura, diz que os jornais e os jornalistas, a partir de agora, têm como função andar por aí a vigiar e a julgar se a informação que sai é correta ou não. E, depois, passam os serviços a julgar. O próprio jornal vai receber um selo de qualidade – através de algo que não sabemos bem o que é; não pode ser a ERC, que não dá para as encomendas agora, imaginemos quando tiver centenas de queixas. Serão uma série de “erquezinhas”, que terão como missão dar um selo de qualidade ou de autenticidade. Isto é: teremos alguém exterior à cadeia hierárquica de um jornal que se pronuncia sobre o que publicou. Isso chama-se, em qualquer parte do mundo, censura! Como pode ter sido proposto em Portugal por um partido – estou a falar do PS – que teve várias tentações totalitárias, sobretudo em relação à televisão, e continua a ter? Um partido como o PS a propor que se crie uma série de pequeninas censurinhas! Já não será um coronel com um lápis, será um cabo ou um sargento. Andarão por aí a por um selo na malta. Em nome de quê um estado democrático vem agora decidir se a informação – já condicionada pelo que falámos e que tem textos balizadores suficientes – está a ser boa ou má? E que autoridade têm essas “erquezinhas” para porem um selo na malta? É perfeitamente revoltante! Isso é invocado porquê? Porque a Europa decidiu estudar a possibilidade de, em relação às redes sociais, criar mecanismos que as impeçam de atuar com a selvajaria que as carateriza. Lisboa, a correr, antecipou-se aos putativos desejos de Bruxelas e tentou aplicar isso não só ao digital, às redes sociais, mas à Imprensa e aos jornalistas. O Parlamento aprovou tudo sem um único voto contra. Marcelo [Rebelo de Sousa] promulgou essa infâmia. E nós, jornalistas, calámo-nos que nem ratos. Foram necessárias duas pessoas que não são jornalistas (António Barreto e Pacheco Pereira) e o provedor do leitor do Público – por acaso no mesmo número do jornal, sem falarmos [previamente] sobre isso – para alertar os jornalistas. Como é possível? Os jornalistas parlamentares, na altura em que isso foi aprovado, não deram por nada? Acharam inócuo? Vem agora o José Magalhães com conversas… É censura, mais nada! De tal modo que o Marcelo enviou para o Constitucional. Convém que o Constitucional não fique a dormir e se pronuncie rapidamente. Volto para o exílio, se a lei entrar em vigor, e devolvo a minha carteira profissional de jornalista.
No seu mais recente livro, “O lado invisível do mundo”, que relata uma longa viagem por África, escreve a certa altura que como repórter sempre procurou ver “sem óculos de esquerda, nem de direita”. É possível ao jornalista olhar para os factos ou acontecimentos que reporta “tirando” os óculos, sejam eles políticos, ideológicos ou sociais?
Isso remete para a velha questão da honestidade. Fui para África com dois inputs: por um lado, uma certa teoria que resultava da minha posição pessoal em relação à guerra colonial; por outro, tudo o que lia sobre ela e sobre África, e o que tinha ouvido das pessoas que regressaram das ex-colónias. Eram coisas completamente diferentes, até opostas! Vou para África com a perspetiva de que o comportamento dos portugueses e dos europeus em geral foi sempre uma abominação ou com a perspetiva de que a colonização teve coisas positivas e que os europeus não foram todos uns bandidos? Sobretudo, procurei não tomar posição entre estas duas perspetivas, os óculos de esquerda e os de direita. Quando lá cheguei, o que mais me surpreendeu não foi uma coisa nem outra: foi a manifesta incapacidade dos jovens estados africanos para se organizarem, criarem um estado, porque não tinham quadros e ninguém os preparou para isso. Foi o meu maior choque, sobretudo em relação à África negra. Saí de lá com uma visão mais límpida do que a que tinha, que não se prendia com óculos ideológicos, mas com uma perceção da realidade tal como ela é. Neste livro, limito-me a relatar aquilo que vivi. Os leitores tirarão as conclusões que quiserem. De certo modo, o livro é uma reportagem.